Teatro Oficina traça futuro com casamento de Zé Celso e 1ª peça dirigida por mulher

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em sua estrutura horizontal, o Teatro Oficina encenou questões culturais e políticas das últimas seis décadas. Os impasses da representação o levaram ao diálogo com Stanislávski, Brecht, Artaud e Oswald de Andrade nas direções tropicalistas de José Celso Martinez Corrêa, ao lado de artistas como Renato Borghi, Fernando Peixoto, Ítala Nandi, Eugênio Kusnet e Etty Fraser.

No curso das vanguardas, o grupo absorveu a antropofagia, a agressividade cênica, as sexualidades e os mitos populares (Canudos) ou dos próprios palcos (Cacilda Becker). Aos 65 anos, em novo impulso renovador, o Oficina se abre à mitologia indígena e à direção feminina de Camila Mota. Em 6 de junho, no teatro situado no bairro do Bixiga, em São Paulo, Zé Celso vai desenhar também sua sucessão no casamento com o ator Marcelo Drummond.

Pela primeira vez, uma peça do Oficina é dirigida por uma mulher. Com 70 pessoas na equipe, “Mutação de Apoteose” estreou na Virada Cultural e ficará em cartaz até 23 de julho. Em outra frente, Zé Celso reúne uma equipe de colaboradores para adaptar “A Queda do Céu”, o clássico contemporâneo do xamã yanomami Davi Kopenawa, organizado pelo antropólogo Bruce Albert.

“A presença das mulheres no Oficina, ao longo dessas décadas todas –vou começar falando de mulheres, não de pessoas não-binárias– sempre foi muito estrutural. Quando você vê o filme ‘A Máquina do Desejo’ [de Lucas Weglinski e Joaquim Castro] foram as mulheres que seguraram muito a onda. Você tinha Etty Fraser e Ítala Nandi. Eu mesma trabalho há 25 anos aqui e participo de muitas áreas da criação e de produção”, conta Camila Mota, diretora de “Mutação de Apoteose”, esboçada na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, em 2019.

A peça reorganiza fragmentos de “Os Sertões” e “Odisseia Cacilda”, espetáculos anteriores do Oficina. Na dramaturgia, Cafira Zoé bebe da adaptação do romance de Euclides da Cunha e da poética das insurreições populares, reconhecendo vínculos entre Canudos e as lutas indígenas, a alta tecnologia dos ancestrais e os retrocessos dos algoritmos.

“A gente bota em cenas antagonistas, porque é preciso saber encarnar em alguém o que é preciso enfrentar, para virar. O teatro tem essa preciosidade, que é a contracenação. E ela não pressupõe que seja harmônico”, diz Cafira.

A sobrevivência do Oficina, sem patrocínio há seis anos, não deixa de pertencer a uma linhagem insurrecional. A direção de Mota propõe uma viagem ritualística e multimídia ao imaginário brasileiro em sua diversidade social, de raça e de gênero. A metáfora geológica de “contrações e expansões” orienta as coreografias.

“Como todo lugar no mundo, o Oficina está se deparando com o masculinismo. É muito saudável transformar isso. Aqui, apesar de ser um lugar que tem a antropofagia como linguagem, que tem um corpo muito livre, não está imune a questões estruturais do Brasil, do patriarcado”, diz Camila Mota durante um ensaio.

“Eu sinto que existe uma resistência. Não digo que por parte do Zé. Pelo contrário, o Zé é um grande artista”, ela ressalta. “Eu sinto que existe uma relação muito messiânica com o Zé por parte de muitas pessoas da companhia. Então, há uma dificuldade grande de ver a possibilidade de uma mulher dirigir. Sei que falta mais gente no ensaio da ‘Mutação da Apoteose’ do que no ensaio de uma peça dirigida pelo Zé. Tem uma coisa que é concreta.”

Numa noite de sábado, em seu apartamento no bairro do Paraíso, Zé Celso Martinez estava animado com a preparação da festa do dia 6.

“O futuro do Teatro Oficina está no meu casamento com Marcelo. A gente resolveu se casar por isso. Fui amante do Marcelo em 1987 e durante sete anos, mas depois a gente continuou convivendo, ele morando em outro quarto e tendo outros amantes. Ele é o cara que tem mais conhecimento do Oficina, o mais longevo. Depois vem a Camila Mota”, diz Zé Celso, que se entusiasmou com “Mutação.”

Ele iniciou a adaptação de “A Queda do Céu” com o aval de Kopenawa, mas ainda não negociou os direitos com a editora Companhia das Letras. O dramaturgo Fernando de Carvalho e o ator e codiretor Roderick Himeros participaram das jornadas de escrita.

“Não tenho a menor ideia de como vai ser”, reconhece Zé Celso. “É uma coisa absolutamente nova para mim. Mas estou muito aberto. A peça é escrita por um grande intelectual xamã, que é o Kopenawa, e pelo Bruce Albert, que fez o livro. É a descoberta de outro continente. Está no Brasil, mas não é Brasil. Os yanomamis constituem uma nação.”

“A Queda do Céu” deve estrear no segundo semestre deste ano. Em abril, o Sesc Pompeia abrigou a primeira leitura pública, conduzida pelas atrizes Lilly Baniwa, Alanis Guillen e Zahy Tentehar, esta última elogiada pelo diretor como “uma nova Cacilda”. “É o projeto mais importante de minha existência”, ele repetia em seu aniversário, na noite de 30 de março, no Oficina.

O livro “Tristes Trópicos”, de 1955, de Claude Lévi-Strauss, influenciou a visão de Zé Celso sobre as etnias indígenas, mas sua aproximação com os yanomami será de outra natureza, entre diretor e ator. No elenco, a presença majoritária de indígenas pode questionar os limites de atores não-indígenas em assumir múltiplas identidades.

Zé Celso defende seu ponto de vista. “Vai ter que ter um elenco indígena enorme. Não tem outra saída. É um desafio que eu assumi”, insiste. “Branco vai ser garimpeiro, missionário, funcionário da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas]. A maioria dos papéis é com os indígenas”.

O estilo representativo nascerá nos ensaios. “Brecht eu deixei pra trás completamente. Quer dizer, às vezes tem umas reminiscências. Mas eu acho o Oswald de Andrade muito superior ao Brecht, a dramaturgia dele”, defende.

“Eu tive uma influência de Stanislavski muito importante. Essa eu não renego jamais. Ele trabalha o inconsciente. Stanislavski superou o ego das pessoas. O ator tem muito ego, né? Mas aí tinha o Stanislavski. Então, era muito fácil dirigir.”

Ele acredita que não vai enfrentar problemas iguais com atores indígenas estreantes. “É um mistério para mim. Deve ter outras coisas de pertencimento a uma comunidade. Mas eu duvido que eles tenham esse problema [de ego]. É outra coisa”. Roderick Himeros iniciou os contatos para costurar a participação dos Yanomami.

As experiências xamânicas de Kopenawa oferecem pontes espirituais para a criação cênica de Zé Celso, que sempre recorreu a alucinógenos. “Kopenawa é xamã. Ele toma yãkoana. Por isso que eu gostava de tomar. Não posso mais. Eu sempre fui drogado. Os grandes momentos da minha dramaturgia, das peças que eu fiz, fiz com mescalina, ayahuasca. Teve uma delas que foi uma peça do Tchecov, ‘As Três Irmãs’, de 1972, toda concebida através da mescalina”.

Meses antes da montagem, seu casamento promete ser outro espetáculo de impacto. “Estou com 87 anos. Estou velho. Sei que vou morrer a qualquer hora, então deixo Marcelo, que é mais novo, tem 60 anos, pode continuar esse trabalho”.

O ator Marcelo Drummond entrou em sua casa quase no fim de nossa conversa. “Já venho desenvolvendo a direção de peças. Acho legal essa coisa de Camila querer passar o que ela sabe no ‘Mutação’. Eu não sou nada pedagogo. Não consigo. O Zé é socrático. Você aprende com ele na vida, amando”, sorri Drummond.

Em março, em defesa da criação do Parque do Rio Bixiga, os atores de “Mutação” lideraram um ritual político contra os planos imobiliários do empresário Silvio Santos no terreno vizinho ao teatro. “Talvez seja uma vitória. Ele não conseguiu fazer nada em 41 anos. Imagina que até hoje, no Oficina, você vê o Minhocão, o céu, a chuva”, celebra Zé Celso.

Formulado pelo ex-vereador Gilberto Natalini e vetado pela prefeitura em 2020, o projeto do parque foi reapresentado por Eduardo Suplicy (PT) no ano passado, antes de deixar a Câmara. Segundo o vereador Celso Giannazi (PSOL), outro aliado do projeto, a votação em plenário ainda não está prevista.

A paralisia de Silvio Santos motiva o orgulho de Zé Celso. “Pra mim, talvez seja uma vitória. Ele não conseguiu fazer nada durante 41 anos. Imagina que até hoje, no Oficina, você vê o Minhocão, o céu, a chuva”.

MUTAÇÃO DA APOTEOSE

Quando: Sex. e sáb., às 20h; dom., às 19h

Onde: Teatro Oficina – Rua Jaceguai, 520 São Paulo

Preço: R$ 100

Classificação: 14 anos

Direção: Camila Mota

CLAUDIO LEAL / Folhapress

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