SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após um longo inverno em que os russos atacaram a infraestrutura civil da Ucrânia e tiveram um sucesso relativo no chamado “moedor de carne” de Bakhmut, tudo indica que a guerra entrou em uma nova fase.
Combates ao longo da frente em Donetsk, onde fica a estratégica cidade tomada pelos russos, e em Zaporíjia, no sul, intensificaram-se nesta segunda (5). Ao que parece, Kiev iniciou enfim sua aguardada contraofensiva de primavera do Hemisfério Norte, tão atrasada que chegou a duas semanas do verão.
Segundo a Rússia, que invadiu o vizinho há 15 meses e disparou a maior crise de segurança na Europa desde a Segunda Guerra, sim. Mas, na versão divulgada na madrugada desta segunda, noite de domingo no Brasil, foi um mau começo para os ucranianos, com perdas nas duas brigadas envolvidas em Donetsk.
O governo de Volodimir Zelenski não fez nenhum comentário, o que leva a duas possibilidades. A primeira, que de fato começou a ação. Nos últimos dias, Kiev lançou até uma campanha pedindo para que nenhum militar ou civil comentasse a contraofensiva, para tentar ter algum grau de surpresa.
Nesta segunda, o Estado-Maior das Forças Armadas de Kiev dissimularam. “Não temos essa informação e não comentamos nenhum tipo de fake [news]”, disse um porta-voz. Já o assessor presidencial Mikhailo Podoliak pediu que as versões russas não sejam levadas a sério, sem contudo entrar no mérito da ação.
Ao longo da guerra, tanto Moscou quanto Kiev se notabilizaram por exagerar o escopo de suas operações militares, quando não mentem descaradamente. Desinformação, afinal, é da natureza do conflito humano desde a Antiguidade e faz parte da tentativa de desmoralizar o inimigo.
Aí entra uma segunda possibilidade, insinuada num post no Twitter nesta segunda pelo chefe de gabinete de Zelenski, Andrii Iermak: “A verdadeira sabedoria é convencer o inimigo de que ele já perdeu”. A mensagem, cifrada, pode sugerir que Kiev está apenas lançando ações pontuais para atrair os russos.
Seja como for, nesta segunda-feira emergiram diversos relatos de intensificação das ações. Em mais um capítulo de sua escaramuça com a cúpula militar russa, o chefe do grupo mercenário Wagner, que tomou Bakhmut em maio, disse que Kiev recuperou uma vila a três quilômetros da cidade.
“Agora, parte do assentamento de Berkhivka já foi perdida, as tropas [russas] estão fugindo silenciosamente. Desgraça”, afirmou em mensagem gravada Ievguêni Prigojin, que como sempre culpa o ministro Serguei Choigu, da Defesa, e o chefe das operações na Ucrânia, Valeri Gerasimov, pela situação.
O notório blogueiro Igor Girkin, que foi chefe da defesa pró-russa na guerra civil iniciada em 2014 no Donbass e hoje é crítico do Kremlin, disse que os ucranianos de fato foram repelidos, mas que não é possível saber se é uma contraofensiva aberta. Já o chefe do batalhão de rebeldes pró-Rússia Vostok, que opera no Donbass, afirmou que os ucranianos tiveram ganhos na região de Velika Novosilka, em Donetsk, e que usaram pela primeira vez os tanques Leopard-2 doados pela Otan, a aliança militar do Ocidente.
“O inimigo está tentando romper [as linhas]. Sentido o cheiro do sucesso, ele vai jogar forças adicionais na batalha”, afirmou Alexander Khodakovski no Telegram.
A Otan disse ter equipado e treinado nove brigadas ucranianas, o equivalente a 45 mil homens, inclusive com 230 tanques novos. De acordo com o vazamento de papéis do Pentágono sobre a guerra, ao todo 12 brigadas, ou 60 mil soldados, seriam usados na contraofensiva.
Seja a contraofensiva ou apenas um teste de estresse aplicado por Kiev, a dinâmica do conflito mudou. Ela já estava se delineando com o incremento nos ataques dentro da Rússia -o presidente Vladimir Putin segue tentando minimizar a guerra como uma operação pontual, e as ações visam a contradizer isso.
Nas duas últimas semanas, houve ataques com drones a Moscou, explosões em refinarias no sul russo e um aumento nas incursões pela fronteira contra a região de Belgorodo, a principal preocupação do Kremlin neste momento. Segundo o governador local, houve combates novamente no domingo, e cidades como Chebekino sofreram 650 ataques de artilharia até a manhã desta segunda-feira.
Tudo isso ajuda a compor o cenário desenhado por Iermak, de pressão psicológica. Com efeito, no fim de semana foi divulgada uma mensagem falsa atribuída a Putin a rádios na Rússia em que o presidente declarava lei marcial e mobilização nacional. “É totalmente falso”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov. Na Crimeia anexada, o vídeo divulgado por Kiev pedindo silêncio sobre a contraofensiva foi inserido por hackers em estações de TV locais.
Com tudo isso, os próximos dias deverão dissipar um pouco da névoa que sempre acompanha momentos importantes numa guerra, deixando claro o que está acontecendo. Para analistas, o objetivo mais lógico para Zelenski seria o de tentar romper a ponte terrestre estabelecida por Putin entre a Rússia e a Crimeia, que anexou em 2014 como parte da reação à derrubada de um governo pró-Kremlin em Kiev.
Isso pode ou não ser exequível. Analistas divergem sobre a capacidade de um rompimento de frente sustentado por Kiev, e o tempo corre em favor dos russos em termos numéricos.
Enquanto isso, Moscou flexiona seus músculos militares de forma coordenada, para passar uma imagem de controle ao Ocidente. Nesta segunda, foram mobilizados 11 mil marinheiros da Frota do Pacífico e 3.500 da Frota do Báltico para exercícios. No Ártico, dois bombardeiros estratégicos com capacidade nuclear Tu-95 fizeram uma patrulha de cinco horas perto da costa norueguesa.
IGOR GIELOW / Folhapress