SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Zivia Lubetkin era uma polonesa de 28 anos que integrava o grupo judaico Liberdade e a organização de guerrilha urbana ZOB, que ela liderava numa tarde de abril de 1943, dentro do Gueto de Varsóvia.
Os guerrilheiros explodiram granadas no asfalto pelo qual passavam soldados nazistas, atiraram sobre eles de prédios do gueto e provocaram uma histórica carnificina no contingente militar alemão.
Missão cumprida. Os combatentes do Liberdade escaparam e frustraram os planos da SS de enviar os sobreviventes do gueto a um dos seis campos de extermínio, nos quais 230 mil judeus de Varsóvia já haviam sido assassinados. A cena é descrita pela historiadora canadense Judy Batalion no livro “A Luz dos Dias – A História Não Contada da Resistência Feminina nos Guetos de Hitler”.
São 616 páginas de um relato fascinante, destinado a neutralizar a impressão de que os judeus se entregaram passivamente aos fuzilamentos e às câmaras de gás e a se contrapor à ideia de que a resistência, não necessariamente com armas na mão, partiu apenas de judeus do sexo masculino.
A Polônia, em fins de 1939, quando a Alemanha desencadeou a Segunda Guerra, tinha 3,3 milhões de judeus, um décimo de sua população e o maior contingente desse grupo cultural e religioso na Europa. Ao fim do conflito, em maio de 1945, os sobreviventes entre os judeus poloneses eram só 380 mil. Por essas tristes contas, feitas bem depois pelo Estado de Israel, tem-se uma das quantificações do Holocausto.
O que o livro de Batalion demonstra é que o número de vítimas poderia ter sido bem maior, caso esses grupos de resistência não tivessem se estruturado, na mais severa clandestinidade, para combater e sobreviver às hediondas forças de ocupação. A atuação de combatentes femininas não é totalmente desconhecida. Já em 1946 era editada em Nova York, e em iídiche, uma coletânea de depoimentos dessas jovens militantes. O livro foi traduzido em inglês dois anos depois, mas em seguida caiu no esquecimento.
Sobreviveu apenas a certeza de que as judias tinham sido de capital importância para, munidas de falsos documentos, tornarem-se mensageiras entre os mais de 400 guetos em que os nazistas confinaram os judeus em toda a Polônia. Um exemplo: em 1942, Frumka Plotnika, então com 27 anos, foi uma das emissárias encarregadas de alertar os judeus sobre o extermínio em massa.
Os homens se prestavam bem menos a essa tarefa, que incluía a circulação de jornais clandestinos. Caso fossem interpelados, eles involuntariamente se denunciariam como judeus devido à circuncisão.
Ao todo, Batalion conta em detalhes a história de 17 lideranças femininas da resistência judaica. Algumas delas tiveram sua memória recentemente valorizada por narrativas também alheias ao livro, caso de Tosia Altman, que recebeu um enfoque especial em 2020, em exposição da Biblioteca Wiener, de Londres. Ela morreu dos ferimentos sofridos no levante do Gueto de Varsóvia, em 1943. Tinha apenas 24 anos.
A resistência tem muitas dimensões. Uma delas consistiu em compensar o fechamento das escolas judaicas com aulas para crianças, dadas às escondidas nos guetos. Foi assim que 120 alunos do ensino fundamental tiveram aulas no Gueto de Varsóvia, que também abrigava coral e grupo de teatro amador.
Os livros em hebraico ou em iídiche estavam proibidos. Em Lodz, Henia Reinhartz, militante do grupo clandestino Bund, conseguiu transportar para o gueto livros que os nazistas não haviam incinerado e os colocou na cozinha do apartamento que sua família ocupava, que virou, assim, uma biblioteca escondida.
Outro grupo clandestino era o Guarda Jovem, “que combinava a luta por uma pátria judaica com o marxismo”, diz Batalion. Essa fragmentação da resistência clandestina em verdade significava muito pouco, porque todos se uniam diante das operações alemãs para o recolhimento de vítimas aos campos de extermínio, as “aktion”, que chegaram a esvaziar o Gueto de Varsóvia de 99% de suas crianças e a criar, entre os sobreviventes, um pudor derivado do sentimento de culpa por ainda estarem vivos.
Mesmo nesse contexto é notável a capacidade de os jovens manterem a capacidade de discutir a reação ao nazismo. Qualquer grupo pouco numeroso já era suficiente para se tornar um núcleo de debate. As mulheres, e o livro trata de modo especialmente carinhoso Renia Kukielka, que depois da guerra emigrou para Israel, assumiram nesse processo um papel ao qual é preciso dar o verdadeiro nome: heroico.
A LUZ DOS DIAS
Autoria: Judy Batalion
Editora: Rosa dos Tempos
Preço: R$ 129,90 (616 págs.)
JOÃO BATISTA NATALI / Folhapress