SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Crianças trans existem.” O estandarte vinha nas cores azul, rosa e branca, que identificam a causa transexual, assim como o arco-íris representa o conjunto sob o guarda-chuva da diversidade sexual e de gênero. Adultos em perna-de-pau e menores de idade em volta, um deles fazendo joinha.
Essas imagens tiradas domingo (11), na Parada do Orgulho LGBT+, em São Paulo, se alastraram tal qual pavio de pólvora nas redes conservadoras. “Qual a tara dessas pessoas com crianças? Não acho certo. E vocês?”, publicou no Twitter Amanda Vettorazzo, coordenadora do MBL (Movimento Brasil Livre) e uma das primeiras a trazer as fotos para a arena pública.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) seguiu junto. “A esquerda tenta empurrar sua agenda justamente na infância, para que o estrago introduzido seja de difícil reversão”, postou o filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Por que eles querem tanto a audiência de crianças?”, disse Nikolas Ferreira (PL-MG), recordista de votos em 2022 para a Câmara.
Thamirys Nunes, 33, já foi denunciada ao Conselho Tutelar. Viu um buffet infantil negar festa de aniversário para sua filha e cinco escolas a recusarem. Acostumou-se a ser alvejada por conservadores, mas também por progressistas que não querem sua causa na linha de frente. Temem que vire combustível para o outro polo inflamar o debate sobre direitos LGBTQIA+.
Ela é a fundadora da Minha Criança Trans, ONG que levou o bloco com crianças e adolescentes à Parada. Em 2022 eles também saíram, mas a presença do grupo só viralizou nesta edição do evento.
Thamirys conta que a filha tinha 3 anos quando a família percebeu sua disforia de gênero -desconexão entre o sexo com que alguém nasce e como se identifica. Não conseguia entender a razão de ser chamada pelo masculino. “Ela falava: ‘Mamãe, posso morrer hoje para nascer menina amanhã? Eu teria sido mais feliz se Deus tivesse me feito menina’.”
Foi um baque. Ela vinha de uma “família extremamente conservadora”, diz. “Eu mesma era bem conservadora, para ser sincera. Mas, em prol da felicidade da minha filha, resolvi falar: tá bom, como [ela] pode ser feliz?”
Comprou-lhe uma sapatilha com brilho, a primeira peça feminina, e formou uma junta de especialistas para entender como criar a menina. Não há qualquer tratamento hormonal envolvido, ao menos até a puberdade, segundo a mãe. Qualquer cirurgia de redesignação sexual, de acordo com o CFM (Conselho Federal de Medicina), só depois dos 18 anos.
A criança tem hoje 8 anos e passa pela chamada transição social, que consiste em adequar nomes, pronomes, roupas e outros fatores ao gênero no qual ela se reconhece.
Seu acompanhamento psicológico é feito no Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo). O projeto virou alvo, em maio, de uma CPI na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), que investigará o tratamento concedido a menores de idade.
No ambulatório paulistano, uma equipe multidisciplinar composta por psiquiatras, psicólogos, endocrinologistas e pediatras oferece apoio a crianças e jovens com inconformidade de gênero. Lá, seguindo as diretrizes do CFM, o atendimento ocorre em etapas.
Primeiro, há conversa. Muita. Paciente e familiares são ouvidos. Constatada a disforia e o desejo de transição, há duas opções: se o menor estiver no começo da puberdade, é iniciado o bloqueio puberal, impedindo o desenvolvimento de atributos sexuais indesejados. Já em caso de puberdade avançada, o mais indicado é a terapia hormonal, prevista a partir dos 16 anos.
Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos, diz ser importante o período de diálogo e, se houver acordo, a supressão da puberdade, método que pode ser revertido no futuro. Ele afirma que sentir desconforto com o corpo nem sempre significa transexualidade. Pode ser algo pontual.
“Ninguém é obrigado a tomar hormônios e fazer cirurgias. Caso aconteça, é fruto de um criterioso acompanhamento pautado em conceitos médicos, não ideológicos”, afirma.
Karen de Marca, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, ressalta que nem sempre é necessária uma intervenção nos pacientes. Para ela, o acolhimento a fim de mitigar o sofrimento é o mais valioso. “A exclusão dessas pessoas é o que de pior pode acontecer. Há perigo de mutilação corporal e até suicídio.”
O pastor e teólogo Yago Martins tacha de criminosa a bandeira levantada por Thamirys e sua organização, que acolhe 580 famílias com filhos trans. “Quando nasce, a pessoa não tem maturidade para perceber a própria sexualidade ou identidade de gênero”, afirma.
Ele credita ao “lobby político” e ao “engajamento de grupos progressistas” a normalização de um transtorno registrado no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, segundo ele. Isso porque, na verdade, a entidade americana não trata a disforia de gênero como transtorno desde 2013. Em seu manual, diz que a variação de gênero não pode ser enquadrada como patologia, mas problemas psicológicos surgem do sofrimento causado pela inadequação. Estes, sim, devem ser tratados.
Em 2018, a OMS (Organização Mundial da Saúde) removeu a transexualidade da lista de doenças mentais.
“Se alguém se sente gordo sendo exageradamente magro, dizemos que possui anorexia e tentamos conformar a imagem à biologia por meio de tratamento”, afirma o pastor Martins, que tem pós-graduação em neurociência e psicologia. “Mas, se alguém se sente mulher sendo homem, mutilamos a biologia em nome de ideologia.”
Algumas vozes fora do conservadorismo viram um erro estratégico na publicização da pauta. Autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder” e colunista da Folha de S.Paulo, Wilson Gomes conheceu a foto a partir de um post de Maurício Souza (PL-MG), jogador de vôlei eleito deputado após ser acusado de homofobia.
“A tese de que os progressistas têm uma ideologia degenerada que viola as crianças é típica dos conservadores que emergiram ao poder com Bolsonaro”, afirma Gomes. “Se você juntar o tema ‘trans’, ‘sexo’ e ‘criança’, cria um coquetel de medos para o qual ainda não há vacina. A questão, portanto, não é se crianças trans existem ou não, é se essa pauta, um poderoso espantalho para a maioria conservadora, beneficia de algum modo a pauta trans.”
Thamirys já ouviu que não deveria jogar sua bandeira para o escrutínio público, sob o risco de fornecer munição para alguns setores contaminarem toda a sociedade com a ideia de que os progressistas estão indo longe demais e querem transexualizar inocentes criancinhas.
“Pergunto: e onde eu deveria estar? Como posso proteger minha filha se eu não falar que ela existe? Se eu não tiver nenhuma política pública [para crianças como ela], se pediatras e juízes não estiverem preparados para recebê-la? Quem protege a menina trans expulsa de casa aos 11 que o Estado finge que não viu, que a família finge que não sabe e onde o ambiente mais acolhedor que ela encontra é na prostituição, na exploração sexual?”
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER E BRUNO LUCCA / Folhapress