SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Duzentos metros de caminhada bastam para trocar o barulho dos carros na avenida Rebouças pelo canto de pássaros nas arborizadas ruas dos Jardins, na zona oeste de São Paulo. O conjunto de bairros que abriga amplas residências de famílias abastadas resiste como uma ilha verde ao avanço das torres residenciais e corporativas nas áreas também nobres do entorno.
Enquanto moradores dos arredores acompanharam nos últimos anos demolições em série de casas para dar lugar a prédios, processo que pode ser intensificado com a revisão do Plano Diretor que está em discussão na Câmara, os jardins América, Europa, Paulista e Paulistano estão imunes à verticalização desde 1986 pelo tombamento estadual que proíbe edificações com altura superior a dez metros.
Se é praticamente impossível extrapolar o tamanho dos edifícios, a maneira como se vive dentro desses imóveis poderá mudar. A imposição de uso exclusivamente residencial por uma única família em cada lote deixará de existir no tombamento caso o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico do Estado) mantenha as novas regras aprovadas por seus conselheiros no final de maio. O texto ainda passará por consulta pública em julho.
“A nova resolução não menciona o uso dos imóveis”, afirma a urbanista Mariana de Souza Rolim, vice-presidente do Condephaat.
A ocupação exclusivamente residencial na maior parte das ruas desses bairros ainda continuará imposta pelas regras de zoneamento da cidade. Essa lei já tem uma minuta de revisão apresentada pela gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), mas o texto também não modifica usos nem perímetros de zoneamento, informou a Secretaria Municipal de Urbanismo. Essa revisão ainda passará pela Câmara.
Independentemente do zoneamento, a resolução do Condephaat já cria condições para a ocupação dos casarões do bairro por mais de uma família ou até mesmo substituições de casas por condomínios horizontais ou por prédios de apartamentos com até três andares, por exemplo.
O traçado das ruas, os recuos das construções em relação às bordas dos terrenos e a manutenção da cobertura vegetal continuarão no tombamento. Essas são características inspiradas nas cidades jardins inglesas criadas como resistência à industrialização, conceito histórico que justifica a classificação como patrimônio urbano do loteamento projetado na primeira metade dos anos 1900 pela Companhia City.
Ao deixar de impor barreiras ao uso, o Condephaat diz ajustar o tombamento às mudanças ocorridas na sociedade, como novos conceitos de grupo familiar e flexibilização do trabalho, segundo Rolim.
Ela diz que tais mudanças podem tornar essa região da cidade mais democrática, embora não exista a ilusão de que a vizinhança deixará de ser predominantemente ocupada por ricos.
Para quem mora nos Jardins, porém, o afrouxamento das regras preocupa. O maior temor é quanto à brecha para o agrupamento de lotes em condomínios amuralhados de alto padrão, promovendo a descaracterização do bairro.
“Tudo indica que serão permitidos condomínios na nossa região, isso aumenta o adensamento e descaracteriza o bairro”, diz Jorge Eduardo Levy, membro do conselho da Ame Jardins, associação de moradores criada em 2007. “Há grandes terrenos ajardinados onde a construção de condomínios, mesmo respeitando as regras de recuos, resultaria na redução da vegetação.”
Especialista em patrimônio urbano, a presidente do IAB-SP (Instituto dos Arquitetos do Brasil em São Paulo), Raquel Schenkman, reforça que a construção de grandes condomínios de luxo representa ameaça de descaracterização dos Jardins maior do que um ligeiro adensamento populacional permitido pelo fim da restrição de uso unifamiliar. “A construção de grandes muros acabaria com a noção de parcelamento dos lotes.”
Para o Condephaat, porém, a exigência de manutenção do traçado das ruas dificultaria a criação em larga escala desses empreendimentos.
O mercado imobiliário vê as alterações de forma positivas, diz Eduardo Della Manna, assessor da vice-presidência do Secovi-SP (sindicado das construtoras) para assuntos legislativos e urbanismo. Ele afirma que condomínios horizontais podem impedir o esvaziamento e abandono de casarões nos Jardins.
“Isso vai dar condições para aquele território não morrer”, diz ele. “Há naquela área imóveis muito grandes que poderiam dar lugar a três ou cinco casas, com equipamentos coletivos como piscinas, que atendem a uma demanda muito grande.”
Della Manna ainda avalia que a mudança proposta pelo Condephaat aos Jardins deveria ser estendida ao Pacaembu, que tem tombamento semelhante.
Enquanto o afrouxamento no interior do bairro gera preocupação, regras menos restritivas poderiam valorizar imóveis nas bordas dos Jardins, segundo os representantes dos moradores, do mercado e de urbanistas. É o caso da margem esquerda da avenida Rebouças (no sentido da avenida Paulista para a avenida Brigadeiro Faria Lima), onde imóveis com aspecto deteriorado contrastam com as torres construídas do outro lado, em Pinheiros.
Lá, embora o uso comercial seja permitido, o limite de altura torna os terrenos menos interessantes para as construtoras.
Morador antigo do bairro, um idoso que falou com a Folha sob a condição de anonimato afirmou que é frequentemente procurado por corretores com propostas muito inferiores ao valor de mercado do terreno. “Querem uma galinha morta”, disse o homem, cujo amplo sobrado de pintura descascada e plantas encobrindo o portão tem um Chevette 1990 na garagem.
A legislação municipal prevê uma área de transição entre Pinheiros e Jardins, com gabarito de 25 metros para os edifícios. A medida não pode ser aplicada, porém, porque prevalece a restrição do tombamento. Na avaliação do Condephaat, aceitar a elevação dos prédios neste trecho empurraria o problema alguns quarteirões adentro, pois imóveis à sombra dos prédios seriam descaracterizados.
Na mesma região, o galerista Alex Tso, 33, vê a desvalorização dos imóveis como uma oportunidade para instalar na avenida a sua galeria voltada à comercialização de obras de artistas negros, indígenas e asiáticos. “Ainda é uma avenida com muitos carros e poucas pessoas na calçada”, diz. “Estar aqui é uma forma de contribuir para a construção de uma relação diferente, com mais vida na rua.”
CLAYTON CASTELANI / Folhapress