No meio da estrada, a caminho de Campinas para uma apresentação, o dramaturgo Oswaldo Mendes, biógrafo de Plínio Marcos, soltou a pergunta. Se você fosse escrever uma ópera a partir de uma peça dele, qual seria? Para o compositor Leonardo Martinelli, a pergunta foi a provocação de que precisava. E, 13 anos depois, estreia hoje no Teatro Municipal de São Paulo sua versão para o palco lírico de Navalha na Carne, um dos textos mais importantes do teatro brasileiro.
A obra não estará sozinha. Quando chegou aos ouvidos do maestro Roberto Minczuk, o projeto foi aceito e ampliado. E a compositora Elodie Bouny foi convidada para compor uma outra ópera inspirada em Plínio Marcos, Homens de Papel. Prevista para estrear em 2020, a dobradinha foi adiada em dois anos. E é resultado da primeira encomenda de novas óperas feita pelo Municipal em mais de 110 anos de história.
“Trabalhar com uma nova obra é um privilégio para todos no teatro. Ele se torna ainda mais vivo, por conta desse processo de cocriação, em que os intérpretes têm a chance de trabalhar ao lado dos compositores”, diz Minczuk. “E trabalhar com óperas baseadas em Plínio Marcos tem uma atualidade muito grande. A realidade que ele retratava, a violência, a miséria, tudo isso é ainda muito presente, basta caminhar pelos arredores do teatro.”
Navalha na Carne e Homens de Papel foram escritas nos anos 1960, ambas proibidas pela censura – Navalha só subiu ao palco em 1967, por insistência e interferência da atriz Tônia Carrero. Ela narra a história da prostituta Neusa Sueli (a meio-soprano Luisa Francesconi), o cafetão Vado (o tenor Fernando Portari) e o homossexual Veludo (o barítono Homero Velho). Já Homens de Papel, estreada em 1969, põe no palco homens e mulheres que trabalham nas ruas como catadores de papel – na ópera, eles serão interpretados por solistas do Coro Lírico Municipal, como a soprano Elaine Moraes, o barítono Sebastião Teixeira, a meio-soprano Lidia Schäffer e o tenor Rubens Medina.
“É difícil não ter em mente que no palco do Municipal estarão aqueles excluídos, marginalizados, que vivem nas ruas, ali fora, no centro da cidade, e que jamais entraram no teatro”, afirma a diretora Fernanda Maia, responsável pela encenação de Navalha na carne (a direção de Homens de Papel ficou a cargo de Zé Henrique De Paula).
“A atualidade dos textos é algo que esteve sempre presente nos ensaios, nas nossas conversas. É muito desafiador manter qualquer distanciamento quando se narra histórias como essas. Ainda mais com uma música tão impactante, forte”, conta Minczuk.
INTERAÇÃO
Fernanda Maia comenta que sua leitura da obra, sem abrir mão da violência dos diálogos, buscou também outros aspectos. “Quando a gente monta uma obra em um diferente formato, uma peça transformada em ópera, sempre há mudanças, algo que se perde, algo que se ganha”, ela explica. “Em encenações da peça a questão da violência física é preponderante. Aqui, foi preciso ter em mente a fisicalidade específica dos cantores, que precisam de uma postura particular para poder cantar. Com isso, tentei explorar também a interação entre eles no que diz respeito às relações de poder, quando os oprimidos assumem o papel do opressor.”
DA RAIVA À POESIA
Leonardo Martinelli tem uma relação próxima com a ópera. Em 2019, estreou O Peru de Natal, com libreto de Jorge Coli, no Teatro São Pedro – e, no mesmo palco, estreia no segundo semestre a ópera O Canto do Cisne, em parceria com a diretora e libretista Lívia Sabag.
Em Navalha na Carne, ele trabalhou diretamente com o texto original de Plínio Marcos. “Todas as situações dramáticas foram preservadas e, o mais importante, a linguagem dos personagens, os 20 palavrões de que falava Cacilda Becker”, diz Martinelli, fazendo alusão ao episódio em que a atriz teria dito ao dramaturgo: “Incrível, conhece 20 palavrões e consegue escrever uma peça”.
Sua partitura traz aspectos como um tema musical associado à “navalha”, que marca, segundo ele, não apenas a existência do objeto, mas “o extremo da situação dramática”. Já Elodie Bouny conta que, ao escrever Homens de Papel, com libreto do dramaturgo Hugo Possolo, tentou manter na música a diversidade da história, respeitando a individualidade dos personagens. “Há um som rasgado, mas, em meio a tanta violência, uma poesia que pode brotar.”
VIOLÊNCIA
“É interessante o fato de que são obras bastante diferentes entre si”, diz Minczuk. “Leonardo faz uma escolha de instrumentos que ressalta o aspecto sombrio, a violência da peça. São 56 minutos de música muito forte, concentrada. E a Elodie, por sua vez, trabalha de forma muito hábil a caracterização das personagens, assim como a presença do coro, terminando de forma grandiosa, quase esperançosa.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.