CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – Uma pessoa caminha e vemos só suas pernas, passo a passo. Outra segue sentido contrário, também deixando ver só o joelho para baixo. A imagem corta para a amplitude de um grande cemitério num descampado com centenas de cruzes brancas, onde numa se lê “soldado desconhecido, morto pela França, 1914-1918”.
Em poucos segundos, o novo filme de Eugène Green, “O Muro dos Mortos”, apresenta sua concisão para tratar de assuntos complexos de teor político e existencial.
Depois de explorar mitologias e fantasias numa epopeia épico-satírica de duas horas em “Atarrabi & Mikelats”, de 2020, o veterano cineasta franco-americano retorna às telas com este conto de 50 minutos, em exibição pela primeira vez no Brasil esta semana no 12º Olhar de Cinema, festival internacional em Curitiba, que segue até quinta-feira.
Filmando quase inteiramente em interiores, com poucos atores e tendo por base o monumento a soldados mortos na Primeira Guerra Mundial, homenageados num muro de 280 metros de comprimento no Boulevard de Ménilmontant, na capital francesa, Eugène Green mantém seu estilo entre a representação alegórica e a narração essencial.
Personagens conversam entre si em planos frontais, ou seja, olham diretamente o espectador, ainda que estejam se dirigindo uns anos outros. Os pensamentos são expostos como epifanias do que significa estar no mundo, e a musicalidade e sonoridade das palavras são cuidadosamente tratadas como liturgias.
A espiritualidade é um mote constante no cinema de Green e, em “O Muro dos Mortos”, está evocada desde o título. Ao andar próximo do monumento aos soldados no cemitério de Père-Lachaise, o estudante Arnaud, papel de Saia Hiriart, se depara com Pierre, interpretado por Édouard Sulpice, que se apresenta como um dos recrutas mortos na guerra em nome da França.
“A Europa cometeu suicídio em massa com a nossa carne”, diz ele, ao explicar sua condição. A fantasmagoria de Pierre domina e fascina Arnaud, que se vê levado a reatar, num vai e vem temporal de espaços e corpos, diversos laços afetivos do jovem soldado que estavam há um século indefinidos.
A jornada de Arnaud é permeada pela materialidade do tempo no qual ele vive e circula, independentemente de transitar no ontem ou no hoje. Esse looping fica explicitado já na epígrafe do filme, que cita Santo Agostinho. “Só existem três tempos, o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras.”
Não importa, então, se o estudante está retornando ao passado ou avançando ao futuro, e sim que, no momento em que Arnaud se relaciona com quaisquer elementos ou pessoas de um ou de outro, ele está necessariamente vivendo seu presente.
Metáforas temporais permeiam todo “O Muro dos Mortos” por meio do palavreado das figuras com quem o protagonista cruza, e tem um momento definidor na presença física de Eugène Green, rotineiramente ator em seus filmes e que faz uma espécie de sábio a dar conselhos filosóficos a Arnaud enquanto bebe vinho numa taberna.
É da conversa com esse homem, marcado por terríveis traumas e perdas, que o estudante aceita a missão de fazer a ponte entre a Paris de hoje e aquela para a qual Pierre não teve chance de retornar. “O vinho é a memória do solo, do Sol e da atividade humana. É também as uvas que nasceram, cresceram e morreram, dando a vida a sonhos que são reais”, declama o velho interpretado por Green.
Em vários de seus trabalhos anteriores, notadamente “A Religiosa Portuguesa” e “A Ponte das Artes”, o diretor, com algum sarcasmo e autoconsciência, fez da reflexão criativa autênticas arquiteturas visuais. “O Muro dos Mortos” tem o mesmo tipo de beleza do melhor cinema de Green, agora puxada para ambições menores em termos estéticos.
O tom elegíaco o aproxima de um réquiem, mas a celebração do tempo presente o afasta do lamento puro e simples para aproximá-lo da valorização pelo que ainda está por vir, mesmo que o antes possa muitas vezes ter sido horrível. Como afirma Green no papel do velho na taberna, é preciso encontrar, na memória do mundo, a luz do futuro.
O MURO DOS MORTOS
Quando Seg. (19), às 21h, no Cine Passeio; qua. (21), às 16h45, no Cineplex Batel
Onde Festival Olhar de Cinema, em Curitiba
Classificação 14 anos
Elenco Saia Hiriart, Edouard Sulpice e Françoise Lebrun
Produção França, 2023
Direção Eugène Green
MARCELO MIRANDA / Folhapress