FOLHAPRESS – A capital paulista, cidade dura, movida pelo dinheiro e pela competição, em que os encontros são prejudicados porque todo mundo está ou parece estar sem tempo, acaba levando mesmo alguns de seus mais talentosos cineastas a uma certa artificialidade de falas e gestos.
Uma das maiores qualidades da geração que começou a realizar longas nos anos 2010, de Juliana Rojas, Marco Dutra e das produtoras Filmes do Caixote e Lira Cinematográfica, foi a de saber driblar esses cacoetes estéticos e dramáticos que vêm desde a ideia da “cidade que amanhece trabalhando”.
Caetano Gotardo é um desses nomes. Após uma carreira tateante em curtas, realiza o impressionante “O Que Se Move”, de 2013, em que a música entra de um modo tão corajoso que faz com que esqueçamos o jeito engessado do cinema paulistano de outrora, mesmo o dos filmes mais valiosos.
Com “Seus Ossos e Seus Olhos”, feito com as duas produtoras mencionadas acima, Gotardo elabora uma espécie de filme da palavra, mas também de encontros e revelações, de frustrações e surpresas. Pessoas se modificando pela relação com outras, mas principalmente pelo contato com o íntimo delas mesmas.
Há algo do cineasta francês Éric Rohmer, obviamente, não só pelas conversas que se multiplicam, mas pela maneira de filmá-las. E há algo do casal Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, pelo modo como a palavra entra em cena.
Depois surge uma metalinguagem típica do iraniano Jafar Panahi, como no recente “Sem Ursos”. E um cruzamento de histórias que lembra as dos filmes de Yasujiro Ozu, que o baixo orçamento e o jogo narrativo fazem parecer uma versão brasileira do belo “É o Amor”, de Paul Vecchiali.
Essas comparações não são fortuitas nem necessariamente desfavoráveis a Gotardo, por mais que seja outro o nível de Rohmer, Straub-Huillet e Ozu. Mostram sintonias com o melhor do cinema moderno e o melhor do cinema contemporâneo.
Mostram, sobretudo, que efeitos estéticos podem transitar pelas poéticas mais diferentes, surtindo resultados diversos, mesmo que em graus diferentes de qualidade. Eis então um filme em que a forma é essencial.
E tem muito de observação. Num dos momentos mais fortes, o próprio Gotardo, como o cineasta João, protagonista da trama de traços autobiográficos, observa o movimento dos jovens no pátio do Centro Cultural São Paulo, um dos espaços mais vivos da cidade.
Um grupo de meninas ensaia uma coreografia. Rapazes fazem rodopios no chão. Os corpos se mexem em danças modernas para músicas que não escutamos.
Nos encontros de João, partes dos diálogos se repetem, os acontecimentos narrados às vezes estão fora da cronologia, as mesmas conversas se dão com outros interlocutores.
É como se viver em São Paulo fosse um aprisionamento num círculo vicioso em que as coisas não progridem, ou progridem na espiral, dando a sensação de redemoinho.
O barulho da chuva atravessa algumas cenas, num trabalho especial da edição de som. Aliás, vemos esse trabalho no filme, na cena em que Gotardo sugere ao mixador que o barulho do abrir das garrafas seja mais intenso do que seria na realidade.
E por falar em realidade, Gotardo se coloca na pele do cineasta, o que ele é, de fato. Daniel Turini, o mixador, é um dos mais conceituados profissionais de som do Brasil. As ruas de São Paulo aparecem sem maquiagem. Os transeuntes reagem à câmera.
Mas o diretor-ator é um agente que incomoda essa realidade, brincando com a artificialidade de falas e gestos como se quisesse comentar, ou mesmo criticar, o cinema de sua cidade.
Faz coreografias ao andar nas ruas. Nos mostra danças sem que ouçamos as músicas. Tem gestos robóticos antes, durante ou depois das falas, que insistem em ressurgir.
Um mundo de autômatos é retratado em “Seus Ossos e Seus Olhos”, mas autômatos com seus humanos por dentro, lutando para sobreviver aos conflitos das relações numa cidade grande, que mal dá tempo de se respirar. Este é um filme sobre São Paulo, a cidade que se modificou e a que sobrevive do outro lado do espelho.
Exibido em festivais durante o ano de 2019, chega só agora ao circuito comercial, num contexto totalmente diferente. Mas a cidade está lá, facilmente reconhecível, oprimindo e encantando ao mesmo tempo.
SEUS OSSOS E SEUS OLHOS
Quando: Em cartaz nos cinemas
Classificação: 14 anos
Elenco: Caetano Gotardo, Malu Galli, Vinicius Meloni
Produção: Brasil, 2019
Direção: Caetano Gotardo
Avaliação: Muito Bom
SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress