OURO PRETO, MG (FOLHAPRESS) – A fase inicial da carreira de um compositor costuma ser seu período mais produtivo. Aos 71 anos, o mineiro Lô Borges quebra esse paradigma.
Ele compunha intensamente quando lançou “Clube da Esquina”, álbum de 1972 com Milton Nascimento, Beto Guedes e outros parceiros, e o “disco do tênis”, como ficou apelidado seu primeiro álbum solo, que saiu no mesmo ano. Lô acredita, porém, que tem criado ainda mais nestes últimos anos.
Essa energia criativa, quase uma compulsão, é um dos temas centrais de “Lô Borges: Toda essa Água”, documentário exibido pela primeira vez ao público na 18ª edição da CineOP, a Mostra de Cinema de Ouro Preto. O filme dirigido por Rodrigo de Oliveira (de “Os Primeiros Soldados”) ganhou projeção no cinema a céu aberto montado na praça Tiradentes no sábado (24).
É um retrato afetivo de Lô, segundo a produtora Vania Catani, um enfoque semelhante ao de “Todos os Paulos do Mundo”, de 2018, documentário sobre o ator Paulo José, também produzido por ela e dirigido por Oliveira e por Gustavo Ribeiro.
“Uma das nossas premissas era não ter especialistas comentando a obra dele”, ela conta. “É como se fosse um fã-clube produzindo um filme sobre o seu ídolo.”
Nos últimos cinco anos, Lô compôs canções que integram sete discos. Alguns já foram lançados, como “Muito Além do Fim”, em 2021, e “Chama Viva”, em 2022, e outros sairão nos próximos meses e anos. No documentário, ele diz que o fato dessas músicas mais recentes terem menor repercussão imediata junto a um público mais amplo “não faz a menor diferença”.
Três horas antes da exibição de “Toda essa Água” em Ouro Preto, o autor de clássicos da música brasileira, como “Um Girassol da Cor do seu Cabelo”, de 1972, e de candidatas a clássico, como “Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor”, de 2003, falou à Folha sobre sua participação no documentário, a influência da bossa nova, o filho rapper e a criação incessante de canções.
“Preciso parar um pouco de fazer música se não alguém vai acabar me internando”, diz, dando risada.
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JOÃO GILBERTO E BEATLES
Em 1962, tomei contato com “Chega de Saudade” e aprendi a tocar violão com esse disco. Eu tinha dez anos. Ainda não existiam os Beatles para mim. Meus irmãos gostavam de música brasileira, minha mãe e meu pai gostavam de Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro.
Um tempo depois, fui ao cinema ver “A Hard Day’s Night”, lançado aqui no Brasil como “Os Reis do Iê-iê-iê”. Por mais sofisticação melódica que as músicas dos Beatles tivessem, elas não se aproximavam da sofisticação das harmonias da bossa nova, por isso digo no filme que aprendi a tocar violão pelo lado mais difícil, a bossa nova. Aprender com os Beatles teria sido muito mais simples do que via João Gilberto, até hoje considerado o melhor violão e voz que já existiu. Cada acorde dele é um tratado de harmonia.
MILTON NASCIMENTO
Nos encontros registrados pelo filme, o que mais me emocionou foi com o Bituca. Ele é emoção em estado bruto, sempre foi assim. Os outros [músicos que aparecem no documentário] são mais secos, mais lógicos.
LÔ NO CENTRO DE UM FILME
Não me senti “voyeurizado” com a câmera me acompanhando, me senti totalmente em casa. Era como se a câmera não existisse.
Sabe aquele famoso friozinho na barriga antes de entrar no palco? Eu não tenho. Fiz duas apresentações com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais em dezembro do ano passado. Eram 70 músicos em cena, com quem fiquei ensaiando durante um ano. Um negócio grandioso. Entrei na Sala Minas Gerais, com mais de 2.000 pessoas, para tocar com a filarmônica como se entrasse na sala da casa da minha mãe para tocar violão.
PRODUÇÃO INTENSA
Não vale a pena ser inseguro na vida, sabe? É preciso ter firmeza nas coisas que você faz, mesmo quando a situação não é boa. Não vejo a coisa pelo lado trágico, como a hiena do desenho. Eu sou a anti-hiena. Procuro ver positividade, não no sentido de viver numa bolha chamada música. Eu não me isolo de nada, sei como é o mundo em que estamos vivendo, mas a música é o escudo que eu tenho, ela me defende. É por isso que, de 2019 para cá, eu compus sete discos de inéditas.
Fiz o sétimo na semana passada. Fui para a serra do Cipó [a cerca de 90 km de Belo Horizonte, onde Lô mora] tomar banho gelado de rio e compus nove músicas em quatro dias. Saía do rio, voltava para pousada, violão, música, violão, música. Houve um dia em que fiz três músicas.
Eu achava que estava produzindo nestes últimos anos como na época do Clube da Esquina [disco de 1972], como na época do disco do tênis [seu primeiro álbum solo, também de 1972], quando fiz 15 músicas em dois meses, uma correria. Eu era muito jovem, tinha 20 anos.
Mas depois percebi que, na verdade, nunca tive uma fase com tanta inspiração como a atual. Isso é um presente. Se o universo quer me dar uma música, eu aceito. Mas faço uma analogia com o rio e a vara de pescar. A vida te dá tudo isso, mas é você que tem que botar a vara no rio, que precisa saber como puxar o peixe.
Hoje eu produzo mais do que no início da carreira. Mas não me preocupo com números, não quero bater recordes.
COMPOR OU FAZER SHOWS?
Show é tudo ensaiadinho e pronto. Já fazer uma música é uma viagem pelo desconhecido, o que me fascina. A composição é o maior sentido da minha vida artística e agora estou compondo como se não houvesse amanhã.
PARCEIROS
Gosto de fazer letra, mas eu tenho terceirizado. Meu parceiro mais frequente é o Márcio Borges, meu irmão, com quem fiz dois discos nos últimos anos. Um deles vai se chamar “A Estrada” e será lançado no ano que vem. E tenho escolhido parceiros lado B, como a Patrícia Maês, escritora e compositora de São Paulo, o Makeli Ka [que vive em Minas Gerais].
FILHO RAPPER
Meu filho Luca [que aparece no documentário] é rapper, é ele quem me fala sobre Djonga, Sidoka, me manda playlists.
Em um disco previsto para sair em 2025, fiz um rap. Não um rap radical; em vez de cantar, eu falo a letra. Aí, por vezes, entra um set, com uma melodia. Foi feito com uma parceira nova chamada Manuela Costa, de Brasília. Gosto de trabalhar com gente que o grande público não conhece.
TOM JOBIM E ELIS REGINA
[As gravações de uma música minha que mais me deixaram honrado foram] “O Trem Azul”, com Elis Regina [em 1981] e com Tom Jobim [em 1994]. Principalmente o Tom.
Tive o privilégio de assistir à gravação da Elis, com um arranjo maravilhoso do César Camargo Mariano. Foi o dia em que conheci ela, que ficou se exibindo para mim [risos]. Tá lindo, Elis, não precisa de mais nenhum take, o César falou. E a Elis: Quando o autor tá presente, gosto de me exibir pra ele.
E o Tom seguiu a harmonia que eu havia feito, não mudou quase nada. O maestro soberano não queria profanar minha harmonia. Com a sabedoria que tinha, ele poderia fazer o que quisesse com a música e acabou fazendo um “Trem Azul” parecido com o meu. Além deles, Bituca gravou, Flávio Venturini, até eu gravei [risos].
DAQUI PARA A FRENTE
Preciso parar um pouco de fazer música se não alguém vai acabar me internando [risos]. Quero fazer meus shows, participar das próximas exibições deste filme, “Toda essa Água”, divulgar meu projeto com a Filarmônica de Minas Gerais e divulgar esses discos que fiz não estou nem aí se vão fazer sucesso ou não.
Posso prometer ao público que vai ler esta entrevista que não vou fazer mais nenhum disco neste ano. Tenho disco pronto até para 2027, um estoque.
O jornalista viajou a convite da organização do evento.
NAIEF HADDAD / Folhapress