MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Desde março, casais italianos de pessoas do mesmo sexo que têm filhos dedicam atenção dobrada aos envelopes que chegam pelo correio. “Começamos a abrir a caixa de cartas em modo compulsivo, duas vezes por dia. Estamos vivendo com muita ansiedade e preocupação pela nossa filha”, diz à reportagem a professora Valentina Bagnara, 35, em referência à companheira, Daniela Ghiotto, 44, e à filha de duas mães, Caterina, 1.
A situação se agravou desde a semana passada. Famílias com núcleos homoafetivos passaram a receber pelo correio uma notificação do Ministério Público de Pádua, na região do Vêneto, com o aviso de que as certidões de nascimento emitidas na cidade com os nomes de ambas as mães estavam sendo contestadas na Justiça por violarem a lei.
Com a carta, cada família recebe a data de uma audiência em tribunal em que um juiz decidirá se as certidões são legítimas ou se devem ser anuladas e refeitas sem o nome da mãe que não é biológica -nesse caso, caberá recurso às famílias.
Valentina ainda não recebeu a carta, mas faz parte do grupo de 33 famílias que estão na mira da Promotoria de Pádua. “É uma questão de dias. Certamente vamos receber também”, diz.
Moradora de Vicenza, ela teve o parto feito em um hospital de Pádua, a cerca de 40 km, depois de uma gestação viabilizada por fertilização assistida na Dinamarca. Na Itália, o procedimento só é permitido para casais heterossexuais, que podem recorrer inclusive ao sistema público de saúde; em uniões homoafetivas, a prática é ilegal –médicos e clínicas que fazem o procedimento em casais homossexuais estão sujeitos a suspensão profissional de até três anos e a multas que podem chegar a EUR 400 mil (R$ 2,1 milhões). Já a gestação de substituição, conhecida como barriga de aluguel, é proibida para todos.
A situação de Valentina e Daniela e de outras famílias italianas é consequência de um informe do Ministério do Interior do governo da ultradireitista Giorgia Meloni. A decisão, de março, impede cartórios municipais de registrar os nomes de duas mães que tenham recorrido à fertilização assistida ou de dois pais de uma criança nascida de uma gestação de substituição. O informe citava ainda uma decisão proferida em dezembro pela última instância da Justiça italiana.
Desde então, prefeitos como o de Milão suspenderam a emissão de certidões de nascimento com os nomes dos dois genitores do mesmo sexo, iniciativa que procurava ocupar a ausência de uma lei específica sobre o tema. Da mesma forma, o prefeito de Pádua havia permitido, nos últimos anos, o registro de ambos os genitores homossexuais.
Se a interrupção dos novos registros era esperada após a circular do governo, o questionamento retroativo das certidões surpreendeu famílias e ativistas. “O caso de Pádua é impressionante, porque nunca houve tantos registros contestados coletivamente nem datados de tantos anos atrás”, afirma Valentina.
Caso a certidão da filha Caterina, nascida no ano passado, seja anulada e precise ser refeita sem o nome de Daniela, o que mais preocupa Valentina são os efeitos sobre a vida cotidiana. Na Itália, por exemplo, uma criança só pode ser retirada na saída da escola pelos genitores ou por pessoas autorizadas por escrito, o que vale inclusive para avós. Em casos de tratamentos de saúde específicos, nem isso funciona.
“O que acontece se sofro um acidente de carro com a minha filha e morro, e ela precisa passar por um exame invasivo, que precisa de autorização de um genitor? Se ela não tem a outra mãe no documento, é preciso que um tutor legal seja nomeado pela Justiça, o que pode levar tempo. Ou seja, a criança fica em perigo de vida”, afirma Valentina, citando como exemplos também decisões sobre heranças. “O ponto da questão é somente um: não estamos defendendo direitos para nós, mas sim para as crianças.”
Outra consequência é a judicialização de cada caso, obrigando as famílias a recorrerem de decisões de cancelamento de documentos e, em última instância, a iniciarem um processo de adoção daquele que um dia foi o próprio filho. “São situações que podem durar anos, o que deixa a criança sem uma série de tutelas, e consumir muito dinheiro.”
“A intenção do Ministério Público é muito clara: querem que as crianças percam um dos genitores. Isso nos preocupa e nos irrita porque tanto nós, genitores, quanto a prefeitura de Pádua, ninguém aqui cometeu crime. Não são casos de gestação de substituição”, afirma a italiana.
A Promotoria de Pádua se isenta da responsabilidade pelo transtorno. A promotora Valeria Sanzari disse à agência Ansa que é obrigada a fazer cumprir a lei. “Com essa lei em vigor, não posso fazer mais nada.”
Para Alessia Crocini, presidente da Famiglie Arcobaleno, associação de pais e mães homossexuais, o caso todo é uma “verdadeira perseguição às crianças com duas mães ou dois pais”. “O governo, desde quando tomou posse, age de maneira sistemática para cancelar os direitos dos nossos filhos”, disse a entidade, em nota. Tanto o grupo quanto Valentina discursaram na parada LGBTQIA+ de Milão, no último sábado (24), que reuniu, segundo os organizadores, um público recorde de 300 mil pessoas.
Eleita em setembro, Giorgia Meloni fez uma campanha com forte discurso contra o que ela chama de “lobby LGBT” e a favor da “família natural”. A circular do Ministério do Interior faz parte de uma série de investidas contra direitos da comunidade LGBTQIA+, promovidas por seu partido, Irmãos da Itália.
Em março, um projeto que propunha a criação de um certificado de filiação que asseguraria direitos das crianças, sejam elas filhas de casais do mesmo sexo ou não, nos países-membros da União Europeia foi derrubado por uma comissão do Senado italiano. O veto foi decidido por uma maioria de votos governistas a partir de uma resolução apresentada por um senador do Irmãos da Itália.
Na Câmera, está em tramitação um projeto que transforma em crime universal a gestação de substituição. A ideia é poder punir na Itália mesmo as pessoas que realizem o procedimento em outros países com pena de prisão de até dois anos e multa de até EUR 1 milhão (R$ 5,2 milhões). A relatora é uma deputada também do mesmo partido de Meloni.
Para Valentina, a explicação para essas ações que envolvem o governo passa pela homofobia e por uma visão de sociedade patriarcal e tradicionalista. “Uma sociedade que se sente superior e tenta discriminar todas as outras realidades, dizendo que elas não existem ou não são válidas, e que por isso não devem ser protegidas de uma forma ou de outra.”
MICHELE OLIVEIRA / Folhapress