BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Para relativizar as críticas à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela, o presidente Lula (PT) evocou uma frase do general Ernesto Geisel, penúltimo a comandar o regime militar brasileiro, que defendia a relatividade da noção de democracia.
“O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Gosto de democracia porque a democracia me fez chegar à Presidência pela terceira vez. Por isso gosto de democracia e a exerço na sua plenitude. O mundo inteiro sabe que a governança do PT aqui é exemplo de exercício da democracia”, disse Lula à Rádio Gaúcha, na quinta-feira (29).
A fala do petista remete às declarações de Geisel cerca de um mês após fechar o Congresso Nacional, em 1977, durante a ditadura militar (1964-1985). Em duas entrevistas a jornalistas francesas da RTF 2, o general defendeu o conceito de relatividade da democracia para validar o regime.
“Todas as coisas no mundo, exceto Deus, são relativas. Então, a democracia que se pratica no Brasil não pode ser a mesma que se pratica nos EUA, na França ou na Grã-Bretanha”, afirmou Geisel na primeira entrevista. Na segunda, disse que “o Brasil vive um sistema democrático dentro de sua relatividade.”
Geisel ainda negou que a ditadura militar tenha praticado torturas e assassinatos -declarações dadas seis meses após a morte de três dirigentes do PC do B na Chacina da Lapa e dois anos após a morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog.
O contexto era o Pacote de Abril, série de medidas tomadas pelo ditador brasileiro em 1977 com o fechamento do Congresso, mudança de regras para as eleições do ano seguinte e a extensão do mandato presidencial de cinco para seis anos.
As novas regras previam que um terço dos senadores seria indicado pela Presidência e que haveria aumento na representatividade de estados menores no Congresso, especialmente no Norte e Nordeste, regiões cuja predominância política era da Arena -o partido de apoio ao regime-, em oposição ao MDB.
Na Venezuela, o autoritarismo começou ainda no governo de Hugo Chávez, especialmente depois que ele sofreu uma tentativa de golpe em 2002. Em 2009, o líder fez uma emenda na Constituição para permitir reeleições ilimitadas. Falava em ficar no poder até 2030, enquanto perseguia opositores e minava a liberdade de imprensa.
Mas foi depois que ele morreu, devido a um câncer, em 2013, que seu vice, Maduro, passou a mostrar a face mais autoritária do regime, tentando se manter no poder com uma taxa de popularidade que nunca se aproximou da registrada pelo antecessor e sendo tachado por setores chavistas como “neoliberal”.
Em 2017, por exemplo, após perder o controle do Parlamento, o ditador criou uma Assembleia Constituinte com amplos poderes para neutralizar a oposição. O chavismo também domina o Tribunal Supremo de Justiça, instância máxima do Judiciário. Ele se reelegeu em 2018 sob eleições muito questionadas e sem o acompanhamento de observadores internacionais.
A ocorrência de uma série de crimes contra a humanidade também foi denunciada. Em abril, a Corte Penal Internacional divulgou um informe reunindo 1.746 denúncias. Em setembro passado, a ONU já havia publicado relatório com 122 casos desde 2014. Espancamentos, uso de descargas elétricas e asfixia são algumas das práticas relatadas por opositores da ditadura.
Na entrevista à Rádio Gaúcha, Lula argumentou que a Venezuela teve mais eleições que o Brasil nos últimos anos –sem citar denúncias sobre a perda de direitos políticos de opositores ao regime ou mesmo o veto à participação de observadores internacionais no pleito de 2018, como é praxe em eleições livres e democráticas.
O presidente ainda comparou o Brasil à Venezuela ao classificar de tentativa de interferência o fato de que alguns países, incluindo o Brasil, reconhecerem Juan Guaidó, então presidente do Legislativo venezuelano, como líder legítimo do país.
“As pessoas têm de aprender a respeitar o resultado das eleições. O que não está correto é interferência de um país em outro. O que fez o mundo tentando eleger Guaidó presidente da Venezuela, um cidadão que não tinha sido eleito? Se a moda pega, não tem mais garantia na democracia.”
“Quem quiser derrotar o Maduro, derrote nas próximas eleições. Agora vai ter eleições. Derrota e assuma o poder. Vamos lá fiscalizar. Se não tiver uma eleição honesta, a gente fala”, completou.
Durante a entrevista, Lula ainda cometeu uma gafe ao se referir ao golpe militar de 1964 como uma “revolução” -termo adotado por militares e simpáticos que defendem a legalidade do regime.
“Vai ser a primeira reforma tributária votada no regime democrático. A última reforma tributária nossa foi depois da revolução de 64, e o Haddad está coordenando com maestria, junto com o ministro Padilha, o líder Jaques Wagner, Guimarães e Randolfe”, disse o presidente enquanto respondia a pergunta sobre a votação da proposta econômica no Congresso.
CÉZAR FEITOZA / Folhapress