Conheça a cidade no oeste dos EUA que se tornou a meca dos refugiados no país

SALT LAKE CITY, EUA (FOLHAPRESS) – Aden Batar fugiu da Somália aos 25, depois que o filho bebê morreu em meio à guerra civil no país. Andy Tran nasceu em um barco enquanto a família deixava o Vietnã pós-guerra no fim dos anos 1970. Mohamed Cherif Diallo saiu da Guiné há 20 anos para escapar de uma ditadura que mirava seu pai. Mario Kljajo deixou a Bósnia pós-guerra ainda adolescente, em 1997.

Além de terem sentido na pele o que é ter que deixar sua casa e seu país para sobreviver, esses refugiados de lugares e conflitos tão distintos têm em comum o fato de terem acabado em Salt Lake City, no estado de Utah, nos Estados Unidos. Hoje, comandam instituições e departamentos de auxílio a migrantes que chegam na mesma situação em que já estiveram.

Eles são alguns dos que vêm ajudando a mudar a cara e os sotaques da capital do ermo estado do oeste americano, famoso por ser a sede da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias –mais conhecida como igreja dos mórmons.

Segundo o censo mais recente, 90% dos 3,4 milhões de habitantes de Utah são brancos. Mas de pouco em pouco esse perfil vem se diversificando. No ano passado, dos mais de 1.500 refugiados reassentados no estado, mais de 1.200 eram afegãos escapando do Talibã, além de congoleses, sírios e sudaneses, quase todos residindo nas imediações da capital. Neste ano, já chegaram 500 ucranianos.

O número total de refugiados na cidade ainda é relativamente baixo. Isso porque países desenvolvidos recebem apenas 0,05% dos 35 milhões de refugiados do mundo todo, segundo dados do governo americano. Em geral, eles acabam indo para campos em nações vizinhas às suas, onde aguardam processos que podem levar décadas na tentativa de serem aceitos em outras partes do mundo.

A cifra vem, no entanto, crescendo depois dos quatro anos de um governo Donald Trump que cortou em quase dois terços o número de refugiados aceitos nos EUA, de 50 mil em 2017 para 18 mil em 2020 –a menor cifra desde o início do programa, nos anos 1980.

Joe Biden ampliou esse limite para 125 mil por ano, mas em 2022 apenas 25 mil refugiados chegaram de fato a desembarcar no país. Esse número considera pessoas que pedem refúgio fugindo de perseguições enquanto estão fora dos EUA, e não inclui os que pedem para ficar no país já dentro dele, como fazem muitos dos que atravessam a fronteira com o México e compõem a face mais visível da questão migratória no país –o governo americano classifica essas pessoas de asilados.

Foi com a morte do filho de dois anos após um acidente doméstico em meio à caótica vida em uma guerra civil que Aden Batar, hoje 56, entendeu que era hora de deixar a Somália, no Chifre da África. Na época, os hospitais abarrotados de mortos e feridos não conseguiram atender o bebê com queimaduras que havia se machucado com uma panela em uma casa lotada de pessoas que também fugiam da guerra –que deixaria mais de 350 mil mortos, segundo as estimativas mais conservadoras. Em 1992, Batar deixou a terra natal e foi buscar ajuda no Quênia.

Lá, ele, que além de somali falava inglês e italiano, trabalhou como voluntário por dois anos como intérprete em um centro de assistência do governo americano até finalmente ser aceito como refugiado nos Estados Unidos. Desembarcou em Utah em 1994.

Ao chegar, Batar recebeu ajuda da entidade Serviços Comunitários Católicos, braço de assistência da igreja onde eventualmente começaria a trabalhar e depois chegaria a diretor do serviço de imigração –mesmo sendo muçulmano. O órgão é um dos principais parceiros do governo de Utah e hoje dá assistência a cerca de 600 refugiados de todos os cantos do mundo, oferecendo serviços que vão de aluguel de casas a aulas de idioma e treinamentos profissionais.

A ucraniana Oksana Nikitenko, 36, chegou aos EUA em 1º de janeiro com a filha Olga, 6, fugindo da guerra empenhada pela Rússia, e no fim de junho chorava ao conversar com a equipe da organização destacada para ajudar os refugiados do conflito –também formada por ucranianos. Pediatra e psicóloga, tentava entender como retomar a vida profissional e tentava acalmar a filha, “que adora os EUA, mas sente muita falta do pai” que ficou em Odessa, segundo contou à Folha.

O apoio de alguém que fala a língua nativa dos refugiados é considerado essencial para o sucesso da integração dos recém-chegados o local.

Responsável pelos programas de saúde mental do centro de imigrantes e refugiados da Associação Asiática de Utah, Andy Tran cita uma suposta emergência médica para a qual foi acionado –um imigrante vietnamita aparentemente estava sofrendo um surto e deveria ser internado. “Pensei que poderia ajudar porque compartilhamos a mesma língua. Cheguei lá e ele não estava falando sozinho. Só estava frustrado, questionando em sua língua nativa por que estava sendo forçado a estar ali”, conta.

Tran nasceu em um barco quando a família, de origem chinesa, estava prestes a chegar a Hong Kong, em 1979. Eles morariam por dois anos em um campo de refugiados ali até que fossem aceitos nos EUA. Ao chegarem, o pai, que falava vietnamita, cantonês e mandarim, conseguiu emprego como faxineiro em um mercado em Utah. Mas só para o período da madrugada, conta Tran.

“Depois da Guerra do Vietnã, a sociedade estava muito dividida sobre aceitar pessoas de lá, e colocaram meu pai no turno da madrugada para que não vissem que um asiático trabalhava ali”, conta ele, destacando o racismo do qual refugiados também podem ser alvos.

Os pais de Tran eventualmente prosperaram com um restaurante chinês, trajetória percorrida por muitos que vão tentar a vida fora. “Há alguns anos, você não via restaurantes étnicos no centro. Hoje, a diversidade é gigante, e isso mudou em muito pouco tempo.”

Essa diversidade cria situações singulares em uma Salt Lake City agora multicultural. Por exemplo, no mês passado, em uma fazenda nas imediações da capital, um idoso do Nepal buscava um jeito de se comunicar com o homem que trabalha ao seu lado, um refugiado do Burundi que limpava a terra e checava o estado da pequena plantação de uma variação de berinjela africana que cuida ali.

A fazenda é parte do projeto New Roots, do IRC (International Rescue Committee), que fornece um pedaço de terra para plantio a refugiados. Mas como a ONG consegue se comunicar com quem fala línguas tão distantes? Sarah Adams, gerente local do projeto, saca o celular e abre um aplicativo, o Tarjimly, que nos conecta a um intérprete de rundi, língua oficial do Burundi. Por meio do intérprete, Josef Bamfu Mukeko, 65, conta que está há 14 anos na cidade e que gosta de trabalhar ali porque consegue fazer algum dinheiro com o que tira da terra.

Além da fazenda, o IRC organiza uma feira para os produtores venderem seus produtos, e também tem programas de auxílio financeiro, aulas de idiomas, ajuda com doações, entre outros. O braço local da organização é tocado por outro imigrante, Mohamed Cherif Diallo, que chegou aos EUA como asilado em 2003 e fez carreira trabalhando em organizações internacionais de volta à África, na Libéria e na República Democrática do Congo.

“Imigrantes trabalham duro. Podem prosperar e até contribuir mais para os Estados Unidos estando aqui do que lutando uma guerra na República Democrática do Congo, onde sofrem traumas e não tem acesso ao que é necessário para atingirem seus potenciais”, diz.

Os mórmons também são parte importante da cadeia de ajuda humanitária do estado, onde cerca de dois terços da população professam a religião. Os membros da igreja já têm certa experiência no tema, já que parte importante da formação religiosa envolve servir em missões humanitárias em outros países –os mórmons atuam 3.692 projetos em 190 nações, segundo a igreja, inclusive com forte presença no Brasil.

A principal força da igreja na área está na arrecadação e distribuição de doações, inclusive com cadeia própria de produção de alimentos como pão e derivados de leite e até camas e colchões para os que chegam de outros países.

Além disso, também promovem aulas de inglês, cursos profissionalizantes e empregam refugiados como Maria Kwizera, 37, que fugiu do Burundi na virada do milênio e passou a maior parte de sua vida, 20 anos, vivendo em um campo de migrantes na Tanzânia. Há quatro anos chegou nos EUA e hoje trabalha separando roupas para doação que chegam na igreja. “Às vezes é difícil entender o que falam aqui, com tanta gente do mundo inteiro, mas é um alívio estar aqui”, conta ela.

Para Mario Kljajo, diretor do escritório de serviços para refugiados do governo de Utah,

“cada experiência de refugiado é individual, depende de onde eles vêm e pelo que passaram”. Mas algo sempre o emociona, diz. Ele próprio refugiado da Bósnia no fim dos anos 1990, Kljajo conta que fica comovido com as cerimônias em que migrantes recebem a cidadania americana. “Lembro sempre de quando foi a minha vez.”

THIAGO AMÂNCIO / Folhapress

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