SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A escalada da “violência institucional sistemática” no sistema prisional cearense, constatado por diferentes órgãos, provocou a mobilização de um grupo de 60 entidades, de 12 estados brasileiros, contra a recondução de Luís Mauro Albuquerque Araújo ao cargo de secretário de Administração Penitenciária do estado.
O apelo público uniu do mesmo lado órgãos de defesa dos direitos humanos, grupos de familiares de presos e o sindicato de agentes penitenciários do Ceará. O pedido, porém, foi ignorado pelo governador Elmano de Freitas (PT), que manteve o secretário.
“Imaginávamos que seríamos ouvidos e que nossa voz seria levada em consideração pelo novo governo, já que o atual tampouco deu relevância a essas denúncias. Estávamos errados”, diz nota de repúdio divulgada às vésperas do Natal de 2022, horas depois de o governador eleito anunciar o secretariado.
Procurada, a gestão estadual não quis comentar a decisão. Em entrevista à imprensa local, Elmano elogiou a atuação de Albuquerque.
O secretário é apontado por integrantes de órgãos de combate à tortura como um dos mentores do chamado “procedimento”, um conjunto de ações para contenção de presos, que, segundo o Ministério Público, inclui uma técnica específica para quebra de dedos de presos. Essa técnica, conforme reportagem da Folha, foi detectada em ao menos cinco estados (AM, CE, PA, RN e RR).
Albuquerque defendeu a utilização da técnica durante uma audiência pública no Rio Grande do Norte, em 2017, estado onde ele coordenou força-tarefa de intervenção em presídios e, na sequência, foi nomeado secretário de Justiça e Cidadania.
“Quando se bate nos dedos, né? Quando falam isso, não é para [não] deixar marca não, porque deixa marca. É para ele [preso] não ter mais força para pegar uma faca e empurrar num agente. É para não ter mais força para jogar pedra”, disse na ocasião.
De acordo com a Pastoral Carcerária do Ceará, o pedido também teve como base os relatórios do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura de 2019, da comissão da Câmara de Deputados em 2020, do Conselho Nacional de Justiça, de 2021, e, ainda, no flagrante do juiz Raynes Viana de Vasconcelos, em 2022, todos na gestão de Mauro Albuquerque e que indicam maus-tratos a presos.
“O flagrante que o juiz deu, em setembro último, evidentemente só comprova aquilo que todos os relatórios das organizações diziam: há um padrão sistemático de violência. […] Deve haver disciplina sim, deve haver controle de acesso sim, mas isso tem que ser feito dentro da legalidade”, afirma o deputado Renato Roseno (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará.
De acordo com o parlamentar, a recondução do secretário “causou uma imensa surpresa negativa”.
A presidente do Sindppen (Sindicado dos Servidores Penais e Servidores do Sistema do Estado do Ceará), Joélia Silveira, diz que a categoria foi contra a recondução do secretário por conta da forma como ele trata os servidores.
“Nosso secretário é interventor. Ele é especialista em intervenção. Isso daí é inegável. Só que ele é um péssimo gestor de pessoas. Nós temos um problema muito sério com assédio moral institucional, que se chama o assédio organizacional, que são as determinações absurdas”, disse ela.
Ainda segundo ela, esse assédio tem provocado o adoecimento dos servidores. Em 2021, segundo ela, foram mais de 1.500 licenças solicitadas pelos agentes; em 2022, foram 800 licenças e, de janeiro a abril de 2023, foram mais de 300 licenças. O estado tem cerca de 3.500 agentes. Também em 2021, diz a presidente, foram seis suicídios de agentes.
“Eu entendo que, de certa forma, ele tortura psicologicamente os policiais penais nesse sentido, quando não há diálogo. Não é a questão de ele não receber o sindicato. Ele recebe, escuta e tudo bem. A gente acha que vai resolver, e quando a gente vê, não resolve e ainda piora a situação”, afirmou ela.
GOVERNO DIZ QUE SECRETÁRIO FAZ TRABALHO EXCEPCIONAL
Procurado pela Folha, o governador Elmano Freitas não comentou quais os motivos que o levaram a manter Mauro Albuquerque no cargo, se ele chegou a ter conhecimento sobre as suspeitas de tortura no sistema e, ainda, porque não levou em consideração o apelo feito pelas entidades de classe.
Em entrevista à impressa local após reportagem da Folha mostrar os casos de tortura, o governador defendeu a permanência do secretário. Disse, em outras coisas, que todas as denúncias foram e serão apuradas com rigor e que Albuquerque sugeriu a implantação de câmeras corporais nos agentes penitenciários.
“O secretário Mauro foi quem defendeu para mim a instalação de câmeras no sistema prisional e em todos os agentes penais. O secretário Mauro faz um trabalho excepcional de ressocialização dos presos no estado do Ceará”, afirmou ele.
Ainda sobre Albuquerque, o governo do Ceará encaminhou uma nota assinada pela secretaria, na qual a pasta diz repudiar “qualquer ato que atente contra a dignidade humana e informa que recebe visitas regulares e cotidianas de instituições fiscalizadoras, como o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, além de entidades de controle social.”
O texto também ressalta o trabalho de ressocialização de presos no estado.
Sobre as declarações da presidente do sindicato dos agentes penitenciários, a secretaria diz que “a política de valorização da polícia penal do estado do Ceará passou por grandes transformações nos últimos anos”.
A pasta diz ter contratado mais de 1.000 novos agentes e elevado os salários em 40%. Também cita a aquisição de quase 200 novas viaturas e quase 3.000 novos armamentos, além de outros equipamentos que devolveram “a autoestima e dignidade dos agentes em seus postos de trabalho”.
“A SAP [Secretaria de Administração Penitenciária] nega as práticas apontadas, repudia qualquer tipo de conduta que ofenda seus servidores e comunica que, nos últimos quatro anos, a pasta ergueu um prédio próprio, equipado e completo para o cuidado transversal da saúde dos seus policiais e contratou profissionais de diversas áreas de atendimento”, diz trecho da nota.
ROGÉRIO PAGNAN / Folhapress