SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No mais novo capítulo da cada vez mais rocambolesca história do motim mercenário ocorrido na Rússia no fim de junho, o Kremlin confirmou nesta segunda (9) que o presidente Vladimir Putin encontrou-se com o líder do movimento e seus principais comandantes cinco dias após a crise.
“A única coisa que eu posso dizer é que o presidente fez sua avaliação das ações da companhia [o grupo mercenário Wagner] durante a operação militar especial [a Guerra da Ucrânia], e também fez sua avaliação dos eventos no dia 24 de junho [o motim]”, afirmou o porta-voz Dmitri Peskov.
O encontro foi relatado inicialmente pelo jornal francês Libération, segundo o qual Putin encontrou-se com Ievguêni Prigojin tendo ao seu lado dois expoentes do grupo dos “siloviki”, os “durões” egressos dos serviços secretos soviético e russo, Viktor Zolotov (Guarda Nacional) e Serguei Narichkin (Serviço de Inteligência Estrangeira).
Os principais adversários de Prigojin e alvos declarados de seu motim, o ministro da Defesa, Serguei Choigu, e o seu número 2, Valeri Gerasimov, não estiveram no encontro, que contou com os comandantes de unidades do Wagner. Ao todo, havia 35 pessoas presentes em 29 de junho, presumivelmente em alguma das residências do presidente.
É mais uma reviravolta. No sábado (24 de junho), quando tropas do Wagner controlavam Rostov-do-Don e marchavam para Moscou, Putin foi à TV comparando a crise com os eventos que levaram ao golpe bolchevique durante a Revolução Russa de 1917, apontando ambições desmedidas, traições e prometendo duras punições.
Logo depois, no mesmo dia, fez um acordo mediado pelo ditador amigo Aleksandr Lukachenko (Belarus), segundo o qual Prigojin e quem mais do Wagner quisesse seriam anistiados e iriam para o país vizinho. Na segunda (26), ele surgiu triunfante entre forças regulares e Choigu, agradecendo por terem evitado derramamento de sangue. Disse que os revoltosos poderiam ir a Belarus, assinar contratos com o Exército ou deitar armas.
O morde-e-assopra continuou, com o fim do caso criminal contra o Wagner e, na semana passada, com a revelação de Prigojin havia voltado para a Rússia -ao mesmo tempo em que um programa da TV estatal iniciava uma campanha dura contra ele, mostrando as riquezas e excentricidades encontradas em um de seus palácios numa batida policial.
Segundo Peskov, os mercenários disseram que o motim nunca foi contra Putin e se ofereceram para continuar combatendo pela Rússia. O Wagner, alternando combate eficiente e táticas suicidas empregando condenados tirados das cadeias russas, foi o autor da mais recente conquista do Kremlin na Ucrânia.
“Os comandantes deram sua versão do que ocorreu [no motim]. Eles enfatizaram que são firme apoiadores e soldados do chefe de Estado e comandante-em-chefe supremo. Eles também disseram que estão prontos para continuar lutando pela pátria-mãe”, afirmou Peskov.
A revelação deixa em aberto todo o arco narrativo da crise, o maior desafio público à autoridade de Putin desde que ele chegou ao Kremlin como primeiro-ministro em agosto de 1999, assumindo a Presidência na virada daquele ano.
Se Prigojin e o Wagner, que cresceu sob o beneplácito de Putin desde 2014 para uma força estimada pelo líder de 25 mil homens hoje, voltarem a trabalhar para o Kremlin, como fica toda a pregação do presidente contra traidores? Mais: qual será a situação de Choigu e Gerasimov, que aliás apareceu em um evento pela primeira vez desde o motim nesta segunda.
Putin historicamente gosta de governar estimulando divisões, mas apesar de os mercenários dizerem que não o queriam derrubar, o motim atingiu o coração de sua imagem. O Wagner pode ao fim mudar para Belarus, mas ao que tudo indica se isso acontecer, poderá acabar operando sob ordens do Kremlin, um temor expresso por Kiev e países da Otan (aliança militar ocidental), já que Lukachenko permite o uso de seu solo por tropas russas na guerra.
Fica também no ar a possibilidade, altamente especulativa, de que tudo não tenha passado de uma altamente elaborada “maskirovka” (disfarce, em russo), nome na Rússia dado a operações militares desenhadas para enganar o inimigo. Há elementos para isso, como o desenvolvimento rápido e o fim igualmente abrupto da crise, mas o dano aparente a Putin foi grande demais.
Prigojin, o homem que fez carreira no setor de alimentação e virou o “chef de Putin”, ganhando R$ 5 bilhões anuais em contratos do setor do Kremlin, fora outros R$ 5 bilhões para o Wagner, segue em silêncio. Ele apenas se manifestou em rede social logo após a crise, negando ter tentado dar um golpe e dizendo que buscava apenas salvar o Wagner das garras de Choigu, que havia dado um prazo até 1º de julho para que mercenários se submetessem a ele.
Ao fim, na hipótese de essa ser a verdade, tudo indica que ele conseguiu seu objetivo, ainda que tenha matado talvez uma dúzia de pilotos russos que se colocaram no seu caminho no dia 24. Há mistérios paralelos, como o destino de Seguei Surovikin, o general mais próximo de Prigojin e visto como um ícone das Forças Armadas russas.
Ele foi detido para, supõe-se, explicar suas relações com o Wagner no dia do motim, logo após gravar uma estranhamente encenada mensagem exortando o fim da rebelião. Depois, sua filha disse que ele estava bem, mas o Kremlin recusou-se a comentar seu paradeiro. Até hoje, ele não reapareceu em público ou manifestou-se.
IGOR GIELOW / Folhapress