SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pela primeira vez na cidade de São Paulo, uma lei vai permitir que proprietários particulares aluguem imóveis de moradia social, que é destinada à população de renda baixa e recebe benefícios fiscais da prefeitura.
Defendida por representantes de construtores e incorporadores como forma de estimular o setor privado a prover habitação para população sem acesso ao financiamento imobiliário, a medida incluída na revisão do Plano Diretor pela Câmara encontra obstáculos nas próprias regras de mercado.
A principal barreira é a dificuldade do poder público para estabelecer um valor do aluguel acessível à população de baixa renda.
Além de representar uma interferência potencialmente ilegal na propriedade privada, a imposição de um preço poderia obrigar empreendedores a ofertar a locação a valor muito inferior ao de mercado.”
Para investidores interessados em comprar unidades para posterior locação, esse tipo de limitação de ganho desvaloriza o imóvel. Para construtores, esse é um risco de prejuízo que torna desinteressante até mesmo os estímulos oferecidos pela prefeitura: a permissão para ampliar a área construída além do limite básico e a ausência de cobrança da taxa para edificar além do tamanho do terreno.
Dificuldades confirmadas pelo veto do prefeito Ricardo Nunes (MDB) a artigos do projeto que limitavam o valor do aluguel a 25% da renda familiar máxima para que se more em uma HIS (Habitação de Interesse Social), de até seis salários mínimos (R$ 7.920), ou em uma HMP (Habitação de Mercado Popular), de seis a dez salários mínimos (R$ 13.200).
Nunes também vetou dispositivo que determinava ao município o complemento do valor da locação nos casos em que moradores da faixa um da HIS (até três salários mínimos) não pudessem pagar a mensalidade.
“Atrelar o valor do aluguel à renda do locatário altera o cenário usual de comercialização, que é o valor de mercado, o que pode ferir princípios importantes do direito, como a propriedade privada, liberdade econômica e autonomia da vontade”, diz Rodrigo Mutti, sócio-coordenador da área de direito imobiliário da Silveiro Advogados.
Sem os mecanismos para regulação do preço, porém, a locação a valor de mercado pode continuar inacessível à população de menor renda. É mais um ponto vulnerável em uma regra já criticada devido à sua baixa eficácia para a redução do déficit habitacional, pois mesmo a imposição de um teto, como o vetado por Nunes, ainda manteria o aluguel caro demais para esse grupo.
“Quase 90% do déficit habitacional de São Paulo é de famílias com até um salário mínimo ou sem renda”, diz a professora Paula Santoro, professora da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) e pesquisadora do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP.
Ela ressalta que o limite de 30% da renda para a cobrança do aluguel já é praticado, como uma espécie de padrão, no mundo todo é considerado o patamar máximo para que a saúde financeira do inquilino não seja prejudicada. Porém, nem sempre esse valor é exigido por lei.
Mais importante do que a lei fixar um teto de aluguel, diz a especialista, é uma gestão que evite remoções violentas e desenvolva políticas de permanência para as famílias mais carentes.
Santoro afirma, nesse contexto, que o aluguel de moradia social funciona melhor quando a propriedade do imóvel é do setor público.
“Na Cohab e no CDHU, o número de imóveis vazios é alto e não há uma estratégia de reposição”, diz a professora. “Se a prefeitura tem um parque grande [estoque de apartamentos públicos] e um aluguel regulado, ela pode ajudar a regular preços, a puxar o preço para baixo. O mercado não aumentaria tanto os preços, porque teria concorrência com o [setor] público.”
Alternativa mais barata do que a construção de moradias pela prefeitura e legalmente viável, segundo o advogado Rodrigo Mutti, seria o comprometimento do município com a locação de unidades habitacionais privadas, antes mesmo do início das construções, para a sublocação das unidades a valores acessíveis às famílias carentes.
Isso não dispensaria a abertura do processo de concorrência pública, mas permitiria uma contratação mais simples e maior rapidez na disponibilização dos imóveis.
Relator do texto de revisão do Plano Diretor, o vereador Rodrigo Goulart (PSD) disse à Folha que, apesar dos trechos vetados, medidas para tornar o aluguel da habitação social acessível à baixa renda serão restabelecidos na regulamentação.
“É a primeira vez que a cidade está adotando esse mecanismo, que é mais um para somar a outras medidas de combate ao déficit habitacional, e os ajustes serão feitos para que o mercado use esses estímulos”, afirma Goulart.
Antes da publicação da revisão do Plano Diretor, só havia permissão legal para a venda das HIS e HMP. Mas aluguel da moradia social é pauta do mercado imobiliário há anos.
Em 2016, o Secovi-SP (sindicato das construtoras de São Paulo) lançou uma proposta parecida com a que foi aprovada agora. A ideia foi batizada de LAR (Locação Acessível Residencial) e era apresentada em reuniões com os governos estadual, municipal e federal em busca de apoio.
“Não foi implantado, até porque para isso precisava da participação do poder público, a gente precisava de uma conta que fechasse”, diz o empresário Flávio Amary, presidente do Secovi-SP à época em que o LAR foi elaborado. A ideia também foi debatida quando Amary foi secretário estadual de Habitação, mas não chegou a ser implementada.
O Secovi-SP propunha cobrar a partir de R$ 790 por mês pelo aluguel acessível valor que representava 30% de três salários mínimos da época. Quem ganhava menos do que isso ficaria de fora do programa, por motivo de viabilidade financeira do negócio.
A ideia reproduz experiências do tipo na Europa e nos Estados Unidos e que também é debatida pelo governo federal dentro do programa Minha Casa Minha Vida.
O professor José Police Neto, coordenador do núcleo de moradia do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, é um entusiasta do modelo.
Ele diz que é necessário dar prioridade às famílias que ganham menos, com ajuda da prefeitura na complementação do aluguel. Outra ideia é se concentrar em levar moradores para a região central da cidade, trocando subsídio ao transporte pelo ao aluguel.
Police Neto defende que a oferta de imóveis possa ser feita tanto por empresas quanto por pessoas físicas. “Tem dinheiro sobrando no mundo para investir em modelos de locação que vão resolver problemas da cidade, que não conseguem manter um parque habitacional [imóveis públicos] com qualidade, porque Cohabs e CDHUs nos últimos anos têm apartamentos de baixíssima qualidade”, diz.
CLAYTON CASTELANI E TULIO KRUSE / Folhapress