‘Hierarquia não pode ser escudo para assédio’, diz juíza de auditoria militar

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Minutos antes de iniciar uma palestra sobre assédio sexual numa unidade militar, a juíza federal Mariana Aquino, 42, viu de perto um gesto que pretendia evitar com sua fala à tropa.

“Foi uma situação superconstrangedora. Um coronel chegou e passou a mão no rosto de uma coronel de uma forma carinhosa, íntima, e ela ficou completamente desconcertada. E a gente estava prestes a entrar na palestra sobre assédio”, contou ela, em entrevista à Folha de S.Paulo.

Ex-tenente temporária da Aeronáutica e membro da Justiça Militar, Aquino afirma que a hierarquia e o ambiente masculino das Forças Armadas contribuem para o silêncio de mulheres militares vítimas de assédio ou importunação sexual.

“A mulher militar, quando é vítima desse crime, se sente de mãos atadas. Porque ela fica com medo de falar alguma coisa e sofrer represálias. Muitas vezes ela prefere silenciar. E como é um ambiente predominantemente masculino, isso tem ocorrido”, afirma ela, que também atua como ouvidora da Mulher na Justiça Militar.

A magistrada conduziu uma pesquisa, com o juiz Rodrigo Foureaux, sobre o perfil de mulheres vítimas de assédio sexual que integram forças de segurança no país -incluindo, além das Forças Armadas, policiais, bombeiros e guardas municipais.

Ela defende a inclusão de itens específicos sobre assédio sexual nos códigos militares e a previsão de expulsão em casos comprovados. “A hierarquia não pode ser usada como escudo para práticas criminosas.”

PERGUNTA – Qual é a diferença do assédio sexual nas Forças Armadas e na sociedade civil?

MARIANA AQUINO – Tanto as Forças Armadas quanto as forças auxiliares têm uma estrutura hierarquizada. As empresas também têm, mas é muito menor essa incidência. E aqui a gente precisa ver que a hierarquia não pode ser usada como escudo para práticas criminosas.

Como no assédio sexual um dos elementos normativos do tipo é a superioridade hierárquica com ascendência, isso fica mais claro nessa seara. A mulher militar, quando é vítima desse crime, se sente de mãos atadas. Porque ela fica com medo de falar alguma coisa e sofrer represálias. Muitas vezes ela prefere silenciar. E como é um ambiente predominantemente masculino isso tem ocorrido.

P. – Algumas sentenças apontam que mulheres militares foram advertidas por “falar mal do chefe” ao fazer denúncias. Isso acontece?

MA – Isso não chegou até mim. Mas elas comentam, depois que eu ministro as palestras, que elas têm medo de falar, de ficar estigmatizadas. Por exemplo: “Não tira serviço com Fulana porque ela vai falar que você assedia. Cuidado”. Esse tipo de coisa. Até para ser aceita no grupo, muitas vezes elas não falam, deixam passar.

P. – O fato de as Forças Armadas ainda terem um ambiente muito masculino faz com que as mulheres não denunciem para evitar mostrar uma suposta fragilidade?

MA – Na pesquisa que fizemos, muitas falaram que deixaram de usar batom, que sentiam a necessidade de engrossar o tom de voz para dar um comando, porque elas sentiam que eram um motivo de chacota. A mulher tem a voz um pouco mais fina. Se ela desse uma voz de comando, elas não eram obedecidas. Então muitas sentem essa necessidade.

Uma colega minha militar estadual falou que passou por uma crise de identidade, não podia sorrir muito porque poderiam interpretar de maneira diferente. Então ela começou a se tornar fechada, calada, por medo de sofrer algum tipo de assédio. Acabou mudando a essência dela.

Isso é muito ruim para a pessoa e agora ela está tratando isso na terapia. A mulher tem que ter liberdade de ser quem ela é, mas não deixa de ser uma profissional. Ela tem que ser respeitada enquanto mulher e enquanto profissional.

P. – Durante as palestras, você já viu algo que chamou sua atenção por parte dos militares homens?

MA – Foi uma situação muito desconfortável. Não sei se seria um assédio porque não sei a superioridade hierárquica entre eles. Mas foi uma situação superconstrangedora. Um coronel chegou e passou a mão no rosto de uma coronel de uma forma carinhosa, íntima, e ela ficou completamente desconcertada. E a gente estava prestes a entrar na palestra sobre assédio.

Acho que, às vezes, as pessoas não têm muito conhecimento e normalizam situações que são constrangedoras. E dentro do ambiente de trabalho isso não cabe.

P. – Quais são as consequências na carreira de um militar acusado de assédio?

MA – A conduta do assédio sexual não está prevista nos regulamentos disciplinares como transgressão. Mas pode se encaixar em outras transgressões. É um comportamento que desvia do normal.

P. – Os códigos disciplinares deveriam ter um item específico sobre assédio?

MA – Sim, porque estaria expresso. O militar é muito correto na questão da aplicação da legislação. Ele sempre pergunta: “Onde está escrito? Vou me ater exatamente ao que está ali”. Se tivesse expresso seria muito mais tranquilo de aplicar.

A pena, no âmbito criminal, normalmente é inferior a dois anos em caso de assédio. Então a gente não vai poder aplicar a exclusão automática da força para praça, nem a representação para indignidade ou incompatibilidade para com o oficialato por conta da pena.

No projeto de lei que eu minutei com o Rodrigo Foureaux, a gente coloca como transgressão disciplinar e sujeita a perda do cargo. Porque hoje em dia não é.

P. – Há relatos de falhas na condução da apuração interna, de revitimização por meio de questionamentos sobre as vítimas. Os IPMs (inquéritos policiais militares) são conduzidos de forma adequada?

MA – Em via de regra eles respeitam, até porque o Ministério Público exerce o controle externo da atividade policial, sempre fazendo sugestões e requerimentos. O ideal é nomear uma encarregada para apurar, para aquela vítima não sofrer uma revitimização.

O ideal também é que ela fosse ouvida em um ambiente em que estivesse mais segura. De repente uma oitiva virtual, na casa dela, porque às vezes só o fato de ela estar dentro da organização militar para falar sobre esse assunto causa uma dor imensa.

P. – A pena para o assédio é pequena e pode gerar uma prescrição rápida. Isso é um problema, tendo em vista que em muitos casos não há denúncia imediata?

MA – Tenho notado que isso está mudando porque, como estamos falando do tema, as mulheres estão se sentindo mais empoderadas para falar. Mas tem mulheres que sofreram isso há muitos anos e não tiveram coragem de falar. E quando uma fala, agora elas querem falar. Elas dizem: “Vão acreditar em mim, porque eu não estou sozinha”. Só que aí pode estar prescrito.

Por isso, o ideal é relatar esses fatos, porque, por mais que a pena seja pequena, o importante é que eles sejam devidamente apurados, independente do resultado que vier. Pode ocorrer uma absolvição, pode estar prescrito. O importante é a apuração.

Lembrando que o comandante que deixar de apurar um pretenso crime que vier ao seu conhecimento pode ser responsabilizado criminalmente.

P. – Há casos de arquivamento e absolvição porque não se encaixou como crime, mas em que houve um desrespeito à mulher militar. Isso não pode dar sensação de impunidade?

MA – Mesmo assim pode ter reflexo administrativo disciplinar. E, principalmente, a vítima não pode ser penalizada por ter falado. Na pesquisa houve casos de mulheres que relataram, por exemplo, que foram removidas para uma organização muito longe da casa delas. Essas punições veladas não podem ocorrer.

P- As militares temporárias estão numa situação mais frágil?

MA – Sim, porque o contrato delas é renovado anualmente. Então, se o comandante verificar que ele não quer, pode tranquilamente não renovar. Então elas ficam realmente mais sujeitas a essas questões.

P. – Surpreende o fato de haver oficiais superiores entre os acusados de assédio?

MA – Não me surpreendo porque é reflexo de uma sociedade que fomenta e normaliza a violência contra a mulher. Se até magistrados foram condenados por assédio sexual, porque o militar de maior posto, não?

Observamos casos de assédio sexual em todos os escalões, seja na iniciativa pública ou privada.

P. – A sra. sofreu algum tipo de assédio quando esteve na Aeronáutica?

MA – Não sofri, mas soube de alguns casos. As militares que relataram o assédio a mim decidiram não levar adiante [a denúncia], pois tiveram receio que isso pudesse atrapalhar a carreira

P. – A sra. vê as Forças Armadas preocupadas com essa questão?

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MA – Eles estão mais preocupados porque estão vendo que têm mais inquéritos. Por conta disso, frequentemente sou convidada a palestrar para falar sobre o tema. Várias vezes os comandantes dizem: “Olha, a gente está muito preocupado. A gente quer fazer alguma coisa, tratar com respeito as mulheres. O que podemos mudar?” Vários já colocaram até essa questão na grade curricular.

P. – E o que eles estão fazendo é o suficiente? Há algo além de palestras, como uma política normativa mais clara?

MA – Pela ouvidoria da mulher eu estou fazendo um trabalho junto com uma tenente da FAB [Força Aérea Brasileira] justamente nesse viés, porque tem essa preocupação. A gente quer apresentar um projeto grande, bem bacana, com a participação de todas as Forças. Vai ficar além da palestra, vai ser uma política de fato em várias frentes.

Raio-X | MARIANA AQUINO, 42

Juíza federal da Justiça Militar, está lotada na 1ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, no Rio de Janeiro. Formada em direito pela PUC-Campinas, especializou-se em direito militar na Universidade Cândido Mendes e em direito internacional humanitário pela Universidade de Leiden (Holanda). É ouvidora da mulher da Justiça Militar e coordena o curso de pós-graduação em direito militar na Uerj (Universidade do Rio de Janeiro). Foi tenente temporária, trabalhando como assessora jurídica da Aeronáutica.

ITALO NOGUEIRA / Folhapress

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