HQ ‘Roma Negra’ narra a trajetória de vidas que se entrelaçam em Salvador

SOROCABA, SP (FOLHAPRESS) – “Eu sou a sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia, eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra, você não me pega, você nem chega a me ver”, cantou Caetano Veloso em “Reconvexo”, em 1989. Mas não é só o músico que tem apreço pela dita Roma Negra.

Salvador, primeira capital do Brasil e detentora desse título até 1763, desperta, até hoje, muitos amores e é cenário de diversas e intensas obras. Conhecida como a Roma Negra, a cidade —e seu apelido— são palcos de uma história em quadrinhos escrita pelo ítalo-chileno, radicado em Salvador, Esteban Vivaldi, 47.

Nascido em 1975, no Chile, a família de Esteban foi para a Itália quando ele tinha oito anos, fugindo da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Morando em Roma, capital do país, o garoto passava os dias desenhando e lendo os gibis do Mickey e as aventuras de Dylan Dog, o detetive dos quadrinhos da Sergio Bonelli Editora.

Com o passar dos anos, Esteban abandonou os desenhos. Formou-se em cinema e passou a trabalhar com documentários. “Desenhar ajuda muito no fazer cinema também, onde trabalhamos muito com storyboard”, diz.

A vida do cineasta mudou a partir de 2014, quando veio para o Brasil atrás de Caroline, com quem viria a se casar um ano depois. Esteban veio ao país sem saber nada sobre. “Eu conheci uma baiana em Roma e precisei vir atrás dela, do amor. Encontrei aqui muitas inspirações para trabalhar meu lado artístico”, afirma.

Vivaldi até tentou trabalhar com cinema no Brasil, mas encontrou dificuldades estruturais. Foi quando resolveu tirar os desenhos da gaveta e levar a pintura e ilustrações como um novo modo de ganhar a vida.

“Roma Negra”, HQ lançada em maio deste ano pela editora Solisluna, é o primeiro trabalho do artista com quadrinhos e esteve em produção durante um ano.

A obra narra histórias que se cruzam na capital baiana: dois adolescentes do interior (Dora e Zé) que querem conhecer o mar e começam uma viagem pelo sertão; um pintor em decadência (Jorge) que tenta se salvar por meio da arte; e um marinheiro (Raffa) que aporta em Salvador. Quem faz as histórias se encontrarem é Alexandrina, moça da periferia que se vira como pode.

“De certa maneira, todos os personagens têm um grau de inspiração em mim. O pintor, o marinheiro italiano. A história tem as minhas percepções sobre Salvador, era um mundo completamente novo que não parava de se revelar. Tudo isso começou a tomar consistência e a nutrir conjecturas que se transformaram nesse livro”, afirma.

Com 204 páginas e tamanho 21cm x 28cm (tradicional formato europeu de graphic novels), a HQ é toda desenhada em aquarela, preta e branca, buscando valorizar o jogo de luz e sombras proposto pelo artista. Características trazidas do cinema, conta Esteban.

“Eu sou muito influenciado por Federico Fellini, Werner Herzog e David Lynch, gosto de trazer algo deles para o meu trabalho”, diz. O surrealismo “lynchiano” é perceptível na obra e influências da nona arte também são notadas.

A Itália é um dos berços do quadrinho erótico e Vivaldi, como italiano, não podia deixar de trazer um toque de Milo Manara, Paolo Eleuteri Serpieri ou Guido Crepax para “Roma Negra”. Essa visão é explorada através do pintor Jorge, na obra.

O autor afirma que suas inspirações vão além dos mestres do erotismo. “Gosto muito do que Moebius fez. Manuele Fior conta histórias como ninguém. Já no Brasil, Marcelo D’Salete e Marcello Quintanilha expressam essa brasilidade em quadrinhos, que é como eu espero ter expressado em Roma Negra.”

O título da obra não é à toa. O apelido da capital baiana vem dos anos 1920, segundo o historiador Manoel Passos Pereira. “O termo teria sido dito, uma certa vez, pela mãe de santo Eugênia Ana Santos, conhecida como mãe Aninha, do Ilé Axé Opô Afonjá, se referindo a Salvador como o centro difusor da religiosidade ancestral africana no Brasil”, afirma o especialista.

Esteban, que se considera ateu, diz que ficou surpreso quando descobriu o apelido de Roma Negra, dado a Salvador. “Você percebe como Roma não te deixa, não tem como fugir dela. Mas a questão religiosa tem um grau diferente aqui, as religiões afro-brasileiras importam muito. Em Salvador, faz parte do dia a dia. Isso dá uma profundidade, uma mística, uma poesia muito enriquecedora.”

Questionado se ele enxerga paralelos entre as duas cidades, o escritor diz que sim. “Roma é a capital do catolicismo, Salvador é do candomblé. São capitais espirituais, fortes, antigas. Tem uma conexão poética entre as duas.”

Segundo o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, Salvador tem 1.165 terreiros de candomblé. “A igreja católica é dirigida sempre por um papa, é sempre a figura masculina à frente. Enquanto nos terreiros, cada um tem sua lógica e pode ser dirigido ou por pai de santo ou mãe de santo. Eu diria que são mais democráticos que Roma”, explica o historiador.

Manoel, no entanto, afirma que prefere comparar Salvador com a Meca, a principal cidade sagrada para os muçulmanos. “O candomblé é sinônimo de união, de troca, de energia. Seria uma comparação mais justa com a religiosidade afro-brasileira.”

Para Esteban, Salvador se revelou potência cultural, contradição social, mistura antropológica complexa e paraíso geográfico. “Esse jeito nobre e miserável. Essa sofisticação e simplicidade. Esse ar de província e, ao mesmo tempo, cidade imperial. Esse ser muitas coisas contemporaneamente. Acho que é suficiente para se apaixonar.”

O lançamento de “Roma Negra” é parte das comemorações dos 30 anos da Solisluna Editora, celebrados em 2023, que assim como Esteban, estreia no mundo dos quadrinhos.

ROMA NEGRA

Preço R$ 125 (204 págs.)

Autoria Esteban Vivaldi

Editora Solisluna

LUCAS MONTEIRO / Folhapress

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