SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Faz pelo menos três décadas que o professor e pesquisador João Roberto Faria, mergulhado em pesquisas sobre a produção teatral do século 19, se depara com o tema da escravidão refletido em obras, declarações e manifestos pró-abolição de uma série de autores, como Ruy Barbosa e Machado de Assis.
Presente de forma lateral em todas as pesquisas e, por consequência, em alguns de seus livros, como “O Teatro Realista no Brasil” e “Ideias Teatrais: O Século XIX no Brasil”, de 1993 e de 2001, respectivamente, o tema ganha um estudo para chamar de seu com a publicação de “Teatro e Escravidão no Brasil”, posto nas prateleiras pela editora Perspectiva.
Na obra, Faria não apenas aprofunda o tema dentro da seara teatral, mas expande sua área de pesquisa, limitada em obras anteriores apenas ao Rio de Janeiro, e, neste livro, chegando às regiões sul, norte e nordeste do Brasil, onde se produzia um teatro sem a mesma visibilidade histórica que eram dadas às encenações na então capital do país, mas igualmente importantes na visão do autor.
“Cerca de cem peças abordaram essa questão e, sem falsa modéstia, até então ninguém tinha feito esse levantamento”, diz o autor, que se debruçou não apenas sobre a análise das obras, mas sobre sua repercussão na imprensa e em publicações de articuladores e intelectuais de uma época em que o teatro era o centro do entretenimento brasileiro.
Faria recupera dados de um órgão responsável por censurar textos que não estivessem de acordo com a moral e com as regras da época, impedindo que ganhassem montagem. Nomeado Conservatório Dramático Brasileiro, era formado por nomes como Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, Araújo Porto Alegre, José de Alencar e um jovem Machado de Assis, entre outros.
“Não é preciso dizer que a escravidão era um assunto delicado para ser colocado no palco. Martins Pena, que teve várias comédias representadas de 1844 a 1864, não foi censurado provavelmente porque suas críticas relativas ao tráfico ilícito, à dureza do trabalho no campo, a um ou outro castigo físico, aos vigaristas que enganavam os negros de ganho e aos vendedores de escravos sequestrados de seus donos não foram percebidas pelos seus contemporâneos como denúncia vigorosa, capaz de mexer com a sensibilidade do espectador”, escreve o autor.
Entre os cem textos resgatados para o livro, Faria acredita ter tido a chance de se debruçar em material senão inédito, ao menos muito raro, que ainda não havia recebido análise ou atenção de colegas, num processo que durou cinco anos e envolveu desde pesquisas em acervos de jornais e bibliotecas, até a entrada em leilões online para adquirir obras até então indisponíveis.
“E durante as pesquisas descobri que muita coisa sequer foi publicada, ou que os textos das encenações que não aconteceram não eram sempre guardados. O livro dá um panorama do papel do teatro como um agente crítico da escravidão, da lei do ventre livre e até mesmo do processo de abolição em certa medida”, diz.
Faria, contudo, deixa claro que há uma diferença entre o fato de os espetáculos serem uma forma de protesto e crítica à escravidão e o processo que culminaria, no século seguinte, nas lutas antirracistas. Não havia atores negros em cena.
“O que havia na verdade eram atrizes, algumas europeias, fazendo uso da blackface”, diz, referindo-se à prática de um ator branco pintar o corpo de preto para interpretar uma personagem negra, muitas vezes de forma caricata.
O máximo que a pesquisa pôde apontar sobre a participação de pessoas pretas nas produções foi durante a encenação de “como se Fazia um Deputado”, de França Júnior, onde foram chamadas pessoas negras para compor o coro para dançar durante uma cena de festa para dar mais realismo à montagem, mas nenhuma delas profissional.
“Guardadas as devidas proporções, é possível enxergar indiretamente uma relação entre aquele momento antiescravista com as lutas sociais hoje. São todos movimentos em busca de um país menos desigual, mas não acho possível comparar esses dois momentos buscando ecos de um movimento ou outro.”
TEATRO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Preço R$ 104,90 (416 págs.); R$ 74,90 (ebook)
Autoria José Roberto Faria
Editora Perspectiva
BRUNO CAVALCANTI / Folhapress