SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem busca obter a cidadania italiana ou emitir o passaporte europeu tem encarado uma saga de meses para agendar serviços em consulados do país no Brasil, já que as representações diplomáticas não estão dando conta da alta demanda formada após um represamento de pedidos durante a pandemia de Covid.
O alvo mais frequente das reclamações é o consulado em São Paulo, mas também há relatos de problemas nas cidades de Curitiba e Belo Horizonte. Na capital paulista, a representação projeta emissão recorde de passaportes até o fim deste ano diante de uma fila de 200 mil pessoas para obter a cidadania italiana.
Desde janeiro, as solicitações de serviços na maior parte das representações no Brasil são feitas pela plataforma Prenot@mi, que substituiu um sistema via WhatsApp utilizado na pandemia. São frequentes, porém, os avisos de indisponibilidade de vagas que impedem a finalização do agendamento.
A corretora de imóveis Inês Negri, 73, tem dupla cidadania e tenta obter um novo passaporte italiano desde maio. Apesar da insistência quase diária, ela não consegue agendar o serviço em São Paulo e, com a validade do documento a poucos meses de expirar, cancelou uma viagem que faria a Madri para visitar a filha. Como ela desejava ficar mais de três meses, o passaporte brasileiro não era uma opção.
Negri já tentou ligar várias vezes ao consulado, sem sucesso. Agora, cogita ir pessoalmente à representação, apesar dos avisos de que todos os agendamentos são feitos apenas online. “O sistema sempre informa que não tem data. Não funciona. Estamos reféns disso.”
Não só brasileiros enfrentam esses problemas. O italiano Cesare Russo, 37, mora em São Paulo desde 2020 e só conseguiu agendar a emissão de um novo passaporte após seis meses de tentativas.
Russo tem o Registro Nacional de Estrangeiros, e com apenas esse documento não pode viajar a alguns destinos, como os EUA. “Meu filho acabou de nascer, quero ir para lá fazer compras, mas não consigo.”
A reportagem também teve dificuldades para se comunicar com consulados italianos. As representações em Curitiba e Belo Horizonte não responderam aos contatos, e a de São Paulo se manifestou após cinco dias.
O cônsul-geral da Itália, Domenico Fornara, admite que a demanda é muito maior que a infraestrutura do consulado de São Paulo. Além da capital paulista, a representação atende Acre, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia. “Temos cerca de 20 milhões na nossa jurisdição que podem ser descendentes de italianos. As solicitações com as quais nos confrontamos a cada dia são enormes”, diz Fornara.
Segundo Fornara, 326 mil pessoas estão cadastradas no sistema do consulado, número que vem crescendo de 10% a 15% a cada ano. Em contrapartida, o quadro de pessoal do consulado não aumentou nos últimos dez anos, afirma o cônsul. “Somos as mesmas pessoas e trabalhamos muito mais.” Segundo o consulado em São Paulo, são emitidos, em média, 170 passaportes por dia.
No total, a representação em São Paulo tem 32 funcionários com contratos fixos, além de cerca de 20 trabalhadores que prestam serviços terceirizados. O consulado diz que quase 40 mil pessoas tiveram a cidadania reconhecida na representação nos últimos cinco anos, número que representa um quinto das 200 mil pessoas que estão na fila hoje para o processo. Com a alta demanda, Fornara descarta aumentar o atendimento ao público por meio de telefone ou emails. “Se abrirmos uma linha telefônica para o agendamento de passaporte, poderíamos receber 5.000 ligações por dia. Não temos condições.”
Assim, há quem recorra a firmas que cobram para assessorar o processo de obtenção da cidadania e, em alguns casos, agendar os serviços. “Todo dia recebo reclamações, as pessoas não conseguem marcar”, diz Vagner Carvalho, CEO do Terra Nostra, escritório de advocacia especializado em cidadania italiana.
Há, também, quem recorra a táticas que, supostamente, aumentam as chances de êxito. Uma delas é acessar o sistema às 19h de Brasília (0h em Roma), quando novas vagas seriam liberadas. Ou tentar agendar a solicitação em dias com fluxos menos intensos, como feriados.
Fundadora do escritório que leva seu nome, Simone Oliveira, que faz o processo de cidadania em tribunais italianos, diz que alguns de seus clientes não conseguem fazer a inscrição no Prenot@mi desde janeiro. Para lidar com o problema, ela orienta fazer reproduções das telas da plataforma durante as tentativas de agendamento. O material, então, é enviado a um tribunal na Itália e costuma ser aceito. Ainda que os custos sejam maiores no país europeu, o encaminhamento do processo costuma ser mais rápido. No consulado de São Paulo, a fila para pedidos de cidadania italiana é de cerca de dez anos.
Serviço mais procurado, a concessão de nacionalidade pode ser dada a qualquer um que comprove ascendência italiana, independentemente do grau de parentesco com o familiar nascido na Itália.
A Trastevere Cidadania, outra empresa a fazer o processo da cidadania italiana, cobra 100 (R$ 534,3) por agendamento. Quatro funcionários são destacados para passar o dia tentando marcar o serviço no Prenot@mi. “O governo não tem interesse em reconhecer a cidadania”, diz o CEO da firma, Eduardo Velloso. “Por que não aumentam as equipes? Acho maravilhoso, porque ganho dinheiro com isso.”
Também são comuns críticas ao site para cadastro no Aire (Registro de Italianos Residentes no Exterior), para pessoas que já têm cidadania. “Alguns campos não aceitam acentuação, e o preenchimento errado pode invalidar o processo. Ao mesmo tempo, não tem suporte, canal de WhatsApp ou de ouvidora”, diz Velloso. “No site há um endereço de email, mas nem todas as mensagens são respondidas”, acrescenta.
O cônsul-geral Domenico Fornara diz que o consulado não reconhece empresas que prestam qualquer serviço ligado à representação. “Muito pelo contrário, desaconselhamos a utilização de tais empresas.”
Para agilizar os serviços, o consulado investe no desenvolvimento de um chatbot, que deverá ser implementado nos próximos meses, além da digitalização de arquivos físicos. Fornara também afirma que vem crescendo a atenção às plataformas online e à comunicação com o público via redes sociais.
“Se você olhar o número de pessoas na nossa base de dados, é como se eu fosse o prefeito da quinta maior cidade italiana. Mas a prefeitura de Bolonha e a de Florença têm muito mais funcionários que nós.”
RENAN MARRA / Folhapress