MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Desde o começo do mês, Helena Maleno Garzón, fundadora da ONG Caminando Fronteras, alerta para o desaparecimento, no oceano Atlântico, de cerca de 300 imigrantes que deixaram o Senegal, no fim de junho, a bordo de três embarcações de madeira usadas para a pesca.
Autoridades da Espanha anunciaram no último dia 10 o resgate de 78 pessoas, localizadas a pouco mais de 100 km das ilhas Canárias, território espanhol na costa noroeste da África, próximo ao Marrocos.
Não se sabe ao certo se são parte dos mesmos grupos sobre os quais Garzón e sua ONG haviam notificado os serviços de resgate, e muitas famílias ainda aguardam notícias dos desaparecidos.
“Espanha, Marrocos e Mauritânia precisam colaborar entre si para buscar essas pessoas. Às vezes, mandam um avião sobrevoar a área por duas ou três horas, o que não é suficiente”, disse à reportagem.
Embora o tema da imigração não seja central na campanha que precede as eleições espanholas, no próximo dia 23, naufrágios ocorridos na rota das ilhas Canárias chamam a atenção de entidades que defendem direitos humanos, enquanto a oposição ao socialista Pedro Sánchez (PSOE) questiona a reaproximação recente com o Marrocos, um aliado do governo no combate à imigração irregular.
Ao longo de junho, desembarques de imigrantes no arquipélago espanhol aumentaram 51%, segundo dados oficiais compilados pela Acnur, a agência de refugiados da ONU, ainda que o acumulado neste ano seja 19% inferior ao mesmo período do ano passado.
De janeiro até o início de julho, chegaram ali mais de 7.200 pessoas. Atualmente, as ilhas Canárias representam o principal ponto de desembarque de imigrantes à Espanha, superando as rotas que levam ao país pelo mar Mediterrâneo.
Apesar de alto, o número de chegadas às Canárias significa uma parcela pequena do total daqueles que entram na União Europeia pelas águas de Itália, Grécia, Malta e Chipre. Dos 78,4 mil de janeiro até agora, quase 70 mil desembarcaram na península italiana, por exemplo.
A diminuição dos números e a grande diferença com o que ocorre hoje em países como a Itália são fatos apresentados em tom de comemoração pelo premiê Sánchez. Em recente entrevista ao canal Telecinco ele afirmou que a rota do Mediterrâneo oeste é a única que diminui na região e destacou o papel do Marrocos como parceiro estratégico.
Para a ativista Garzón, os dados celebrados não representam com exatidão o que ocorre nas Canárias. Enquanto os desembarques diminuíram na comparação com o ano passado, o número de tragédias do primeiro semestre quase não teve alteração.
Segundo monitoramento da Caminando Fronteras, são 778 mortos ou desaparecidos na rota das Canárias entre janeiro e junho deste ano, frente a 800 no mesmo período de 2022.
“O governo afirma que reduziu a imigração, mas não comenta sobre as vítimas”, diz Garzón. “Os números de mortes deste ano e do ano passado são parecidos. Por quê? As pessoas não estão chegando porque não estão sendo resgatadas e acabam morrendo.”
No ano passado, Pedro Sánchez foi criticado por ter elogiado autoridades da fronteira em Melilla, entre Espanha e Marrocos, pelo combate a que chamou de um “ataque violento e bem organizado” de imigrantes que tentaram atravessar uma cerca que divide o território. A ação terminou com mais de 30 mortes e quase 80 desaparecidos.
Até hoje, o caso não foi esclarecido.
Considerada uma das mais perigosas entre as que levam à Europa, a rota das Canárias passou a ser mais utilizada desde a pandemia, e o crescimento das últimas semanas é visto como consequência de uma crise política no Senegal, agravada por violentos protestos.
Para a ativista, os naufrágios e desaparecimentos que ocorrem na área têm como causas a omissão e a lentidão das operações de resgate e a falta de coordenação entre as autoridades de Espanha e Marrocos. “Monitoramos muitos casos em que o serviço de resgate espanhol disse ter dito ao do Marrocos para fazer o resgate, e eles dizem que sim, mas na verdade nunca vão”, diz.
A análise é compartilhada pelo Conselho Europeu para Refugiados e Exilados, que reúne mais de cem ONGs da área. “A falta de coordenação de resgate entre as autoridades espanholas e marroquinas continua contribuindo para as mortes na rota atlântica”, disse o órgão.
Apesar da crise imigratória que envolve a Europa –que motivou embates políticos na Itália, na França, no Reino Unido e na Holanda– o tópico não está entre os principais da campanha eleitoral espanhola.
Mesmo o partido ultradireitista Vox tem preferido dar destaque a temas ligados a igualdade de gênero e direitos LGBTQIA+, em vez de defender sua proposta de “bloqueio naval” contra a “chegada desordenada de milhões de imigrantes ilegais”, como consta do seu programa. Os nacionalistas têm chance de chegar ao poder como parte da coalizão encabeçada pelo conservador Partido Popular (PP).
Já o líder do PP, Alberto Núñez Feijóo, que pode se tornar o próximo premiê, identificou na relação entre Sánchez e a monarquia e o governo do Marrocos um possível ponto fraco do adversário.
Isso porque, em março do ano passado, o socialista deu uma virada diplomática ao apoiar o plano do país africano para a área do Saara Ocidental, segundo o qual a ex-colônia espanhola, anexada nos anos 1970 pelo Marrocos, poderá ter mais autonomia desde que continue sob controle marroquino. Desde então, Espanha e Marrocos reataram laços e anunciaram acordos de controle da migração irregular.
Feijóo, que defende o equilíbrio do país entre Marrocos, Argélia e separatistas saarianos, levou o assunto ao debate televisivo realizado no último dia 10, quando acusou Sánchez de omitir os termos do acordo. “O senhor Sánchez nunca informou sobre o Marrocos, então não posso saber qual é o compromisso. Não posso responder se vou manter essa posição ou não, porque não a conheço”, disse.
Setores da imprensa espanhola levantam a hipótese de que o aumento recente do fluxo imigratório nas Canárias possa ter ligação com falas de Feijóo, uma tentativa do governo marroquino de mostrar força e pressioná-lo a manter os compromissos assumidos por Sánchez em relação ao Saara Ocidental.
O acordo entre Madri e Rabat também é criticado por Garzón, da ONG Caminando Fronteras. “A Espanha dá dinheiro para o Marrocos parar os imigrantes, mas o dinheiro não é para proteger direitos humanos, e sim controlar as pessoas por meio da violência.”
MICHELE OLIVEIRA / Folhapress