‘Sinfonia dos Orixás’ de Almeida Prado ganha ótima gravação da Osesp

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Em aflição, em amor eu te celebro”. “Toda a delicadeza do poeta/ Flui/ Exangue/ Num círculo de dor”, dizem os versos musicados por Almeida Prado em 1969 para coro, solistas e orquestra. Gravada pela Osesp, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, com direção de Neil Thomson, a obra integra um novo álbum dedicado ao compositor nascido em Santos, que faria 80 anos em 2023.

Harmônicos descendentes (vindos do agudo para o grave), em efeito wagneriano, abrem a peça evocando o acidente aéreo que matou o poeta português Carlos Maria de Araújo, ativo na imprensa paulista na década de 1950. O poema, que batiza a obra de Almeida Prado, “Pequenos Funerais Cantantes ao Poeta Carlos Maria de Araújo”, foi escrito por Hilda Hilst.

Os “Pequenos Funerais Cantantes” preparam o ouvinte para a “Sinfonia dos Orixás”, obra orquestral madura composta entre 1984 e 1985, que prevê 20 movimentos com durações entre meio e oito minutos divididos em três partes: “Chamado aos Orixás” (precedido por uma “Saudação a Exu”), “Manifestação dos Orixás” e “Ritual Final”.

A escuta atenta da gravação da Osesp atesta estarmos diante de obras de extraordinária força poética, escritas por um compositor cuja criatividade e domínio sonoro não se deixa comparar com muito nomes das gerações pós-Villa-Lobos.

Almeida Prado recusa, em sua música, quaisquer traços de academicismo: arrisca-se, acolhe os sons ao redor, mas jamais cai na solução (tão fácil e comum) de simplesmente colar temas e estilos uns nos outros.

Como por milagre, tal como em Mozart, a forma se desenvolve, mutante, mas tudo se amarra no último momento, revelando a unidade que subjaz na heterogeneidade.

Um misticismo vivido intensamente, característico de sua personalidade, convive, em suas obras, com uma capacidade ilimitada de escuta, cuja ambição nunca opõe beleza e estranhamento. Polêmicas —como a velha querela entre nacionalistas e vanguardistas— passam totalmente à margem de sua busca.

A “Sinfonia do Orixás” começa com um belo efeito de eco após o chamado de trompa. Os orixás do compositor são estelares, como “Abatolá”, descrito como o “Canto do Universo”, e não é por acaso que seu ciclo de obras mais conhecido seja o das “Cartas Celestes”, visões pianísticas “transtonais”, nas quais matéria e forma sonoras são geradas a partir do posicionamento das estrelas no céu em diferentes momentos.

“Oxalá” surge em três momentos diferentes: como um “solar” solo de corne inglês que remete a Olivier Messiaen, seu professor em Paris nos anos 1970; um enérgico jogo de búzios, com escrita mais próxima a Marlos Nobre, compositor pernambucano de sua geração; e a uma stravinskiana seção de “amor e energia”.

A percussão total em “Ogum-Obá” contrasta com a harmonia peregrina das cordas em “Ibejí”, ou com a escuta profunda de “Iemanjá”, com solo de violino e superposições improváveis entre os motivos. “Omulum” tem orquestração brilhante, e a paixão em “Iansã” junta cordas com percussão marcada, que por fim é desmontada.

Permeando os movimentos-manifestação estão dois interlúdios, “As Águas do Rio Níger”, que ao lado de certas figuras curtas repetidas, quase imutáveis, permitem à nossa escuta seguir o enredo sem medo. É música para se ouvir e curtir.

Se a pesquisa sobre o material sonoro de origem africana era uma preocupação importante do compositor à época da escrita da “Sinfonia dos Orixás” —suas “Savanas”, para piano solo, são de 1983—, o trabalho sobre ressonâncias, sobre a movimentação que o som carrega dentro de si é tema perene de sua produção, assim como a variedade de texturas e de formações vocais-instrumentais.

Tudo isso está presente, de fato, na escrita dos “Pequenos Funerais Cantantes”, com sua leveza e alternância entre canto coletivo coral, recitação pura, escrita silábica e canto vocal solista. A gravação conta com participações do barítono Sabah Teixeira e da mezzo soprano Clarissa Cabral.

O álbum é o 15º lançamento da série “The Music of Brazil”, do selo Naxos, uma inédita cooperação entre a Osesp e as Orquestras Filarmônicas de Minas Gerais e de Goiás, projeto idealizado e desenvolvido pelo Itamaraty para gravações de excelência do repertório sinfônico e camerístico de compositores brasileiros.

Já há um outro álbum da coleção dedicado a Almeida Prado, contendo concertos para piano e orquestra pela Filarmônica de Minas Gerais com solo de Sonia Rubinsky.

Para além da evidente importância musicológica do projeto, são momentos assim —como o do contato direto com o misticismo libertário de Almeida Prado— que nos permitem mudar o que temos sido e apostar no que podemos ser.

SINFONIA DOS ORIXÁS

Avaliação Ótimo

Onde Disponível nas principais plataformas

Autoria Almeida Prado

Gravadora Naxos

Interpretação Osesp

Regência Neil Thomson

SIDNEY MOLINA / Folhapress

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