Redação
O salto evolutivo necessário para uma cepa do vírus da gripe aviária infectar humanos ocorreu poucas vezes e foi resultado de anos de adaptação, revela um estudo publicado nesta segunda-feira (17) na revista especializada PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences).
De acordo com a pesquisa, as alterações na proteína hemaglutinina (HA, a letra “H” dos tipos de influenza), principal responsável pela ligação do vírus com as células do hospedeiro, ocorreram duas vezes na história evolutiva do influenza A H3N2, responsável pela pandemia de gripe aviária em 1968, iniciada em Hong Kong.
De 1968 até 2009, quando houve uma nova pandemia de gripe aviária mundial, o vírus não evoluiu para infectar de maneira mais eficaz seres humanos ou então para se adaptar à nossa espécie, como ocorreu com o H1N1. Apesar de ter apresentado uma adaptação inicial a receptores presentes nas células humanas, ele passou a apresentar a forma genérica (que infecta tanto aves quanto mamíferos, incluindo humanos) alguns anos depois.
A afinidade às células humanas, assim, não é o único fator que vai indicar a capacidade do vírus de saltar entre as espécies (chamada “spillover”), mas também a sua taxa de transmissão quanto mais animais infectados, maior o risco, sua presença nos diferentes tecidos se atinge mais o trato respiratório superior, com disseminação por tosse ou espirro, ou inferior, que transmite com contato mais próximo e outras mutações que podem facilitar a infecção de humano para humano.
“A mutação da hemaglutinina do vírus da gripe aviária para humanos não foi o suficiente para levar ao processo de seleção natural desse vírus na nossa espécie, sendo um processo lento e de passo a passo em que vários fatores, inclusive mutações nos genes nucleares do vírus, participam”, afirma Erik de Vries, pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Utrecht (Holanda) e coordenador do estudo.
A pesquisa, assim, encerra uma visão de muitos anos de como o vírus influenza A teria evoluído rapidamente e sucessivamente para se tornar mais “adaptado” aos seres humanos. “Até o momento, a epidemia de gripe aviária que atinge animais de criação e selvagens em todo o mundo não estabeleceu uma transmissão sustentada de humanos para humanos, e nosso estudo demonstrou que tais eventos são raros”, disse.
O cientista lembra, porém, que a cepa atual de gripe aviária H5N1 é considerada altamente patogênica para os animais que ela infecta. Só nos Estados Unidos, mais de 58 milhões de aves foram sacrificadas devido à infecção com o vírus.
Na última quarta (12), a OMS (Organização Mundial da Saúde) emitiu um alerta sobre os perigos de surtos recorrentes de gripe aviária para o contágio em humanos. De acordo com o órgão, as infecções já causaram enormes perdas em populações animais, tanto de aves selvagens e de criação quanto em mamíferos, afetaram a cadeia produtiva de alimentos e causaram prejuízos aos agricultores e agropecuários.
Os casos em mamíferos preocupam especialmente pela proximidade com os humanos, levantando inclusive suspeitas de uma possível “adaptação do vírus para infectar humanos”, além de poder servir como “hospedeiros intermediários de mutação do vírus”, escreve o órgão.
No Brasil, dados do Ministério da Saúde confirmam 62 focos de gripe aviária em sete estados (Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Bahia, Paraná e Santa Catarina) de 15 de maio até o último dia 11. Foram contabilizadas ainda 417 pessoas expostas a aves prováveis ou confirmadas, com zero casos em humanos confirmados, 36 descartados e dois ainda em investigação.
No estudo da PNAS, os cientistas analisaram cepas do vírus H3N2 ao longo de mais de 50 anos para avaliar a afinidade do patógeno aos receptores em aves e humanos. A análise a nível molecular (ou o que ocorre no interior das células, incluindo genes que são ativados) permitiu medir a evolução do vírus quanto à força (se ela consegue se manter por muito tempo) e especificidade (se ela só se liga aos receptores específicos) da ligação.
A partir da cepa de 1968, oito anos se passaram até mutações que geram uma maior afinidade com as células receptoras humanas surgirem: alterações para se ligar ao ácido siálico humano (Sia) 2 e 6. Com o tempo, o vírus voltou a apresentar a mutação de ligação ao receptor nas aves (Sia 2 e 3). A cepa H5N1 apresenta apenas a afinidade às células de aves.
Em seguida, eles testaram se baixas doses do vírus eram suficientes para provocar a infecção de células humanas ou se altas doses eram necessárias. A conclusão foi que, para ocorrer a infecção, baixas doses do vírus com maior afinidade às células receptoras garantem a ligação, mas não a transmissão de célula a célula. “A mutação teria não só que ocorrer, mas também muitas cópias do vírus [replicação] teriam que ser geradas para garantir a transmissão para humanos, e isso é raro”, explica o pesquisador.
Para Fernando Spilki, virologista da Rede Corona-ômica BR ligada ao MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), o estudo concretiza um conhecimento que muitos especialistas têm alertado sobre os vírus que é justamente a importância de condições específicas de contágio para acontecer o “spillover”.
“Não é apenas uma adaptação [para humanos], é preciso ter uma replicação suficiente em diferentes esferas do trato respiratório onde [o vírus] pudesse ser expelido em grande quantidade e, por enquanto, não é o caso com o H5N1”, disse.
Porém, o contato cada vez mais próximo com animais selvagens, principalmente devido ao avanço do desmatamento, que tem empurrado os animais para perto de grandes centros urbanos, além da grande quantidade de mamíferos e aves de criação atingidos no mundo, gera preocupação.
“Como vimos com a Covid-19, uma taxa de contágio elevada traz mais riscos de o vírus se replicar e mutar. É por isso que é importante criar sistemas de monitoramento, de vigilância animal e epidemiológica e se preparar, inclusive com estoques de vacinas adaptadas à cepa. Aqui, o Instituto Butantan tem essa capacidade.”
ANA BOTTALLO