SÃO PAULO, SP E SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Uma rivalidade não mobilizava tanto o meio cultural da Bahia desde o auge das cantoras de axé Ivete Sangalo e Cláudia Leitte, no início dos anos 2000. As duas artistas negavam desavenças, mas se viram em uma espiral de intrigas incentivada por fãs, empresários e sites de fofoca.
Com visões antagônicas sobre a música de concerto, os maestros Carlos Prazeres e Ricardo Castro disputam, agora, o controle da Orquestra Sinfônica da Bahia, a Osba, e o repasse da verba estadual no valor de R$ 26 milhões para a garantia da administração.
Na semana passada, a briga entre os maestros subiu de tom, quando a Secretaria de Cultura da Bahia divulgou o resultado preliminar da seleção pública, escolhendo a organização social que administraria a orquestra nos próximos dois anos. O Instituto de Desenvolvimento Social pela Música, o IDSM, foi a única habilitada a prosseguir no certame.
Castro foi diretor do IDSM, em dois períodos: entre 2008 e 2015 e de 2018 a 2019. Depois, saiu do cargo e passou a comandar os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia, o Neojiba, uma vitrine política dos governos do PT, desde 2007. Atualmente, o IDSM administra o Neojiba com orçamento anual de R$ 22 milhões. Enquanto isso, a Associação dos Amigos do Teatro Castro Alves, a ATCA, liderada pelo próprio Prazeres, foi desclassificada do edital.
Prazeres ocupa o cargo de maestro da Osba desde 2010, quando sucedeu Castro, depois de ficar três anos à frente da orquestra. O resultado da seleção pública mobilizou a cena musical, impulsionou protestos do público e incendiou as redes sociais. Os dois maestros preferiram não conceder entrevistas, mas a reportagem apurou que Prazeres vai recorrer da decisão.
Para a burocracia do governo, a ATCA foi relapsa durante o edital, com documentação incompleta e insuficiência nos currículos. Com isso, teria demonstrado uma desorganização administrativa que contrasta com a qualidade artística da orquestra. Um abaixo-assinado online com quase 8 mil assinaturas, pedindo a permanência da ATCA à frente da Osba reflete o nível de popularidade alcançado pela orquestra nos últimos anos.
Com programas dedicados à música popular em datas festivas como o Carnaval e o São João, Prazeres transformou a Osba em um fenômeno pop. Nos últimos meses, a orquestra tem se apresentado para até 5.000 pessoas na Concha Acústica do Teatro Castro Alves. Os ingressos são disputados a tapa.
“O governo do estado reconhece a importância da Osba e o quanto esse projeto de popularização tem uma boa aceitação pelo público”, diz Bruno Monteiro, secretário estadual de Cultura. No circuito artístico da Bahia, a avaliação é de que a disputa passa por diferenças de visões sobre a música e descambou para guerra de egos entre os dois maestros.
Também há uma avaliação de que, apesar da rivalidade, os trabalhos dos dois se complementam. Castro tem méritos por formar jovens músicos em seu trabalho na Neojiba. Já o trabalho de Prazeres foi determinante para renovar o público das orquestras na Bahia.
Prazeres tornou o CineConcerto, programa em que a orquestra interpreta trilhas sonoras de filmes, num acontecimento da vida cultural de Salvador. Em geral, a programação da Osba tem se orientado pela popularidade das peças executadas.
No Festival de Música de Trancoso, que aconteceu em março passado, Prazeres promoveu um pout pourri de grandes sucessos da música de concerto: o “Bolero”, de Maurice Ravel, a “Abertura”, da ópera Carmen, de Georges Bizet, o “Vocalise”, de Serguei Rachmaninov.
Em cena, o maestro se transforma num mestre de cerimônias, explicando didaticamente as peças do programa em longos discursos, o que na visão do público da música de concerto pode se tornar enfadonho. Em Salvador, Prazeres é uma estrela de Hollywood. É parado na rua para tirar selfies e virou nome de prato num daqueles bistrôs franceses que não existem na França.
Prazeres radicalizou sua atitude progressista no fim de 2022, com o projeto Osbrega. Nesses programas, a Osba interpreta clássicos da música romântica brasileira, como “Fogo e Paixão”, de Wando, e “Torturas de Amor”, de Waldick Soriano. Numa postagem nas redes, Castro mostrou pouco se entusiasmar com a iniciativa.
“Quando uma orquestra sinfônica estadual, depois de conquistar milhões inéditos para seu orçamento e poder contratar músicos excelentes, escolhe esse ‘título’ para promover um concerto que poderia ser tocado melhor por ‘Lairton e seus teclados’, estamos certamente entrando em um círculo do inferno nunca Dantes visto neste país”, ele escreveu. A postagem foi precedida pela reprodução do significado da palavra “brega”, que originalmente tem o sentido de “puteiro”, segundo o livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso.
Castro também fez críticas aos concertos realizados apenas com parte da orquestra, como os que aconteceram no último mês em cidades da Chapada Diamantina. “Levaram 12 músicos e anunciaram ‘Orquestra Sinfônica da Bahia’. Cadê os outros 60? Estão na praia?”, indagou o maestro em entrevista à Rádio Educadora da Bahia.
A entrevista enfureceu os músicos da Osba, que viram uma tentativa de Castro de jogar a sociedade contra a orquestra. Os músicos afirmaram que a composição do conjunto muda conforme a orquestração das obras tocadas.
Disseram ainda que as cidades de Mucugê e Igatu não dispunham de um teatro capaz de abrigar a formação completa. Com a possível influência de Castro, a gestão do IDSM seria um retrocesso, de acordo com os instrumentistas.
Os músicos afirmaram que ninguém ficaria feliz em ser dirigido por quem falou mal de todas as realizações dos últimos dez anos. Eles dizem ainda ser uma inverdade que, sob Prazeres, a Osba tenha deixado de lado o repertório canônico. Nessa temporada, afirmam, cerca de 90% dos programas têm peças de compositores canônicos, e apenas cinco foram dedicados ao repertório popular.
O IDSM, no entanto, já tem um plano artístico para a orquestra. Cláudio Cruz, que atualmente rege a Orquestra Jovem do Estado de São Paulo, assumiria o cargo de maestro da Osba, na gestão do IDSM. Ele afirma que a desavença entre Prazeres e Castro não deve atingir as discussões sobre o futuro da Osba, e apresenta uma visão convencional, amplamente adotada por maestros que lideram orquestras no século 21.
“Não podemos fazer uma programação de fácil assimilação. É preciso cativar, mas também educar, mostrar a beleza da erudição. Isso não significa descer pela goela do público um repertório europeu. Fui um dos primeiros a interpretar trilhas de filmes aqui no Brasil, então não vejo motivo para encerrar o Cineconcerto”, diz Cruz.
Fernanda Tourinho, diretora do IDSM, diz que a possível gestão da organização social, buscaria captar ainda mais recursos, criar um conselho curador e elaborar projetos pedagógicos para a população baiana. “Não fizemos uma proposta eurocêntrica, é preciso conhecer o projeto antes de sair de treta. Isso é coisa de torcida de Ba-Vi”, diz ela, mencionando a rivalidade dos times Bahia e Vitória.
GUSTAVO ZEITEL E JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress