(FOLHAPRESS) – Apropriar-se da crítica, incorporá-la e vendê-la com a mercadoria. Embora bem manjada, essa artimanha do capitalismo costuma funcionar. É mais ou menos isso que acontece com a operação “Barbie”. Já faz tempo que a boneca de seios volumosos, cintura fina e pernas longas recebe ataques duros por promover um padrão de beleza irrealista, inatingível, racista.
Porque tais críticas repercutem de forma negativa nas vendas, a resposta dos fabricantes vem sendo, há décadas, diversificar sua linha, de modo a criar modelos com as mais variadas fisionomias e ocupações, para além da loira sensual.
O elenco do filme dirigido por Greta Gerwig traduz essa fuga do estereótipo: há Barbies negras, asiáticas e com deficiência; médica, sereia, presidente, vencedora do Nobel. Na Barbieland, todas as garotas têm o mesmo nome -Barbie, claro-, assim como todos os garotos se chamam Ken. (Há exceções com nomes diferentes, logo voltaremos a elas). Alguns, porém, são mais iguais que os outros. A diversidade não envolve os papéis de protagonista, reservados aos loiríssimos Margot Robbie e Ryan Gosling.
Vamos à sinopse do filme, que não só não teme o clichê como o abraça. Conforme explica a narração logo no início, na Barbieland, as Barbies “podem ser o que quiserem” e, graças a elas, questões como feminismo e igualdade foram resolvidas. “Ao menos isso é o que as Barbies pensam, pois elas vivem em Barbieland”.
Cor-de-rosa nas paredes, no chão e no figurino, festa do pijama só para garotas todas as noites -para desapontamento do apaixonado Ken-, ninguém perde tempo com tarefas ordinárias como abrir portas e os canteiros de obras são dominados por mulheres.
Tudo muito perfeito até que, misteriosamente, a Barbie estereótipo interpretada por Robbie pensa na morte. Do nada, seu calcanhar (sempre levantado devido aos saltos altos) toca o solo e uma leve celulite acomete-lhe a coxa. Na tentativa de que as coisas voltem a ser como sempre foram, ela deixa sua mansão em busca do mundo real, onde vive a menina real que provavelmente imaginou essas maluquices.
É no mundo real e, mais especificamente, no quartel-general da Mattel, a fabricante do brinquedo, que se revelam o alto teor de hipocrisia e oportunismo de narrativas pseudo-inclusivas de nosso tempo.
Numa reunião de cúpula em que todos os participantes são homens engravatados, o presidente fala que a alma do negócio é a “agência feminina”. Faz referência à capacidade de fazer escolhas com independência e liberdade -mas demonstra que quem decide são os machos.
Sim, é para rir, e nós rimos. Mas há boas chances de ser um riso nervoso. Que não entendam mal: fica evidente que se trata de uma crítica. Mas talvez não seja apenas crítica.
De fato, o filme parece ser uma alfinetada não só nos fabricantes da boneca idealizada por Ruth Handler nos anos 1950, mas mais amplamente ao capitalismo e ao patriarcado. De acordo com esse viés, no mundo feminino das Barbies sempre despertou mais interesse do que o dos Kens, fadados a papéis coadjuvantes. A boneca e seus acessórios ajudariam as garotas a se empoderarem.
Sim, há piadas muito boas. Como quando a Barbie estereotípica quase chora ao conceber que podem acusá-la de fascista. Ou quando, sendo estratégicas, as bonecas ensinam umas às outras truques infalíveis para conquistar um cara: diga-lhe que nunca viu “O Poderoso Chefão” e peça-lhe para explicar o filme. Ou para explicar qualquer outra coisa, das regras do golfe a como usar o Photoshop.
Sim, o final emociona e empolga as espectadoras -não vou dar spoiler, mas adianto que há conversas pirandellianas entre criadoras e criatura.
Infelizmente, “Barbie” é também, em muitos momentos, a própria encarnação daquilo que critica. Arrancam algumas gargalhadas as cenas com bonecas e bonecos da Mattel que saíram de linha.
É o caso de Allan, na realidade criado nos anos 1960 e que não chegou a emplacar, pintado como o único ser não hétero de Barbieland. E de Midge, a Barbie grávida, também uma invenção da década de 1960 que deixou de ser fabricada por não vender tão bem.
Allan até rende duas ou três cenas divertidas querendo fugir quando o machismo parece tomar conta do pedaço. Já Midge recebe pouca atenção da narrativa, numa reiteração da máxima comercial de que quem não vende bem merece sair de circulação.
Feitas todas essas ressalvas, preciso reconhecer: é impossível não se envolver, não se divertir, não se comover com “Barbie”. O filme esbanja inteligência nos diálogos, tem um roteiro muito redondo e a performance do elenco é irretocável (ainda que, de fato, num registro estereotipado).
Ou seja, um produto bem acabado, vocacionado para o sucesso, não só do filme, mas de dezenas de modelos da boneca, novos ou vintages, vendidos para crianças e adultos.
BARBIE
Quando Estreia na quinta (20) nos cinemas
Classificação 12 anos
Elenco Margot Robbie, Ryan Gosling e Will Ferrell
Produção EUA, 2023
Direção Greta Gerwig
LÚCIA MONTEIRO / Folhapress