SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não é incomum avistar bandeiras dos EUA em meio à imensidão azul e branca dos protestos contra a reforma judicial em Israel. Na terça-feira (18), dia de novas manifestações contra a iniciativa da coalizão governista, o símbolo aparecia nas mãos de algumas das milhares de pessoas que voltaram a bloquear rodovias e tomar estações de trem em uma tentativa de impedir o avanço da proposta no Legislativo.
As bandeiras são a forma que parte dos manifestantes encontrou para lembrar que a reforma, vista como uma ameaça à democracia, também põe em risco o elo com seu maior aliado externo. Afinal, o presidente americano, Joe Biden, tem criticado abertamente a ideia, constrangendo o premiê israelense, Binyamin Netanyahu, a adotar uma postura mais conciliadora.
Anunciado no início da semana, seu muito protelado convite para que Bibi, como Netanyahu é conhecido, visite a Casa Branca resultou, por exemplo, em uma declaração na qual o líder israelense se compromete a buscar “um amplo consenso público” acerca da legislação.
Para a coalizão governista, a mais à direita da história do país, as mudanças impõem ao Judiciário um limite necessário para restaurar o equilíbrio entre os Três Poderes no país. Críticos afirmam, porém, que medidas como tirar do Supremo o poder de vetar leis aprovadas pelo Parlamento ou aumentar a influência do governo sobre a nomeação de juízes removeriam os contrapesos em se baseia um Estado democrático.
Especialistas se dividem quanto aos impactos que a reforma pode ter na aliança entre os países. Alguns afirmam que o avanço contra o Judiciário mina um dos maiores pilares desse elo, a ideia de que Tel Aviv é a única democracia do Oriente Médio e que, portanto, Washington tem o dever moral de defender o país.
A posição é defendida por Karina Calandrin, professora de relações internacionais da Uniso (Universidade de Sorocaba) que analisa o governo Netanyahu em um pós-doutorado na USP.
A pesquisadora ressalta a possibilidade de as consequências de uma eventual aprovação da reforma se estenderem além do nível institucional. Ela destaca que, embora o investimento do governo americano em Israel seja notório –relatório do Congresso dos EUA deste ano afirma que, desde a fundação do Estado hebreu, em 1948, Washington já injetou US$ 158 bilhões (R$ 758 bilhões) no país–, parte do dinheiro vem da sociedade civil americana, que demonstra cada vez mais insatisfação com o panorama atual.
Pesquisa da Gallup divulgada em março indicou que 54% dos americanos são a favor dos israelenses, o menor índice desde 2005. Já o apoio aos palestinos, que vinha crescendo desde 2016, alcançou uma alta histórica, de 31%. Os números são ainda mais desfavoráveis para Tel Aviv quando o recorte é geracional, com 42% daqueles nascidos entre 1980 e 2000 dizendo apoiar os palestinos, e 40%, os israelenses.
Já outros especialistas afirmam que o fato de Washington e Tel Aviv compartilharem valores democráticos, ainda que relevante, não é o principal elemento no elo entre os países. Dov Waxman, diretor do centro da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) para estudos sobre Israel, diz que a importância estratégica do país para a Casa Branca é muito maior do que quaisquer outros fatores.
Ele argumenta que Israel é o aliado mais estável no Oriente Médio, além de possuir o Exército mais forte da região. Soma-se a isso o fato de que um eventual distanciamento abriria caminho para que outros governos expandam sua influência, como a China, que, após anos de relações puramente comerciais com vários países árabes, promove hoje uma ofensiva diplomática, ao mediar a retomada de laços da Arábia Saudita com o Irã e se oferecendo para negociar um acordo entre Israel e Palestina.
Waxman ressalta que os diálogos entre israelenses e americanos tiveram muitas idas e vindas desde o estabelecimento da aliança, no final dos anos 1970. “É como um casal, com fases boas e outras ruins.”
O pesquisador lembra um momento de tensão entre os países, em que Netanyahu e o então presidente americano, Barack Obama (2009-2017), não só divergiam sobre o acordo nuclear com o Irã como não gostavam um do outro em nível pessoal. Ainda assim, foi o democrata quem aprovou o maior pacote de assistência militar a Israel na história dos EUA, de US$ 38 bilhões, a serem enviados ao longo de dez anos.
A estabilidade histórica da aliança não significa, porém, que a reforma judicial não fragilizará o elo entre os países. “O tom e a natureza dessa relação mudariam. Os EUA são próximos de muitas nações autoritárias, como a Arábia Saudita. A ligação entre eles seria mais próxima disso”, afirma Waxman.
Tanto o diretor britânico quanto a professora brasileira afirmam ainda que uma das maiores perdas que o governo Netanyahu pode ter com esse estremecimento é no âmbito de órgãos multilaterais, como a ONU.
“Israel é o país que mais tem condenações na ONU e nunca sofreu nenhuma sanção”, diz Calandrin –o país foi alvo de 140 resoluções críticas da Assembleia-Geral desde 2015, ante 68 emitidas contra todas as demais nações no conselho. “Por outro lado, o Iraque tem uma condenação no conselho e sofre sanções até hoje. Isso vem muito do lobby que os EUA fazem na comunidade internacional.”
Por ora, o avanço da reforma segue a todo vapor no Knesset. O Parlamento agendou para a semana que vem a terceira e última leitura de um projeto de lei que limita o poder da Suprema Corte ao proibir os tribunais de usar o chamado “padrão de razoabilidade” para invalidar decisões do governo.
Contudo, a situação parece indicar menos uma ruptura entre os países e mais uma tentativa de mediação, vide o convite de Biden para que Bibi o visite na Casa Branca: o ato foi simbólico, porque a maioria dos premiês do país já tinham recebido uma proposta do tipo a essa altura de seus respectivos mandatos.
Enquanto isso, o presidente de Israel, Isaac Herzog, discursou nesta quarta no Senado americano, em uma sessão boicotada por alguns democratas que se opõem ao modo como o governo Netanyahu lida com a questão palestina. Na fala, o líder israelense, cuja função é sobretudo cerimonial, prometeu mediar os conflitos internos e disse respeitar as críticas, segundo ele vindas “de amigos”. Mas afirmou que é preciso cuidado para que elas não se tornem “uma negação do direito de Israel de existir enquanto Estado”.
“Questionar o direito a autodeterminação do povo judeu não é diplomacia, é antissemitismo”, disse.
CLARA BALBI / Folhapress