SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O presidente da República só pode estar de sacanagem.
Nesta encruzilhada entre ficção, história e pornochanchada que é “O Presidente Pornô”, romance de estreia de Bruna Kalil Othero, Bráulio Garrazazuis Bestianelli é eleito para comandar o Plazil. Qualquer semelhança com a realidade brasileira não é mera coincidência num livro que “narra acontecimentos políticos que já ocorreram, ocorrem e talvez ocorrerão na história republicana do Brasil”, diz a autora.
Já nas primeiras páginas vem o alerta para que ninguém culpe o narrador pelo que “fizer vossas genitálias tremerem” num livro fértil em efeitos colaterais: da dificuldade de distinguir cores, “com predominância de verde e amarelo na percepção visual”, à “vontade incomum de dar o cu”.
A prosa devassa de Othero, uma mineira até aqui mais conhecida pelo trabalho poético, condensa numa única figura os pecados venais dos vários homens que ocuparam a cabeceira do Executivo nacional. E no tocante a esses paralelismos históricos todos aí o leitor talvez pense de cara em Jair Bolsonaro, “talkey”?
O morador do Palácio da Alvorada de 2019 a 2022 é, de fato, uma grande inspiração para Bráulio, que em sua campanha eleitoral não faz propaganda enganosa: “Não entendo de economia, não entendo de cultura, não entendo de segurança, não entendo de saúde, não entendo de educação. Não entendo de medicina, de agricultura, não entendo um montão de coisa. Por isso, vou colocar em cada um dos meus ministérios alguém que entenda disso tudo aí”.
Bolsonaro já deu declarações nessa linha. No programa Roda Viva de 2018, então fortíssimo candidato à eleição, disse que tinha “vários postos Ipiranga”, como chamava auxiliares que consultava nas áreas em que era confessadamente ignorante. Paulo Guedes, seu ministro da Economia, foi o representante-mor do apelido.
O fictício Bráulio é também um camarada que presta reverência às “Forças Mamadas”, promete uma “Bolsa Feminina” às mulheres feias e vê o desmatamento como sinônimo de progresso.
Raciocínios que ecoam Bolsonaro, um entusiasta do militarismo que declarou que não estupraria uma colega deputada do PT porque ela era feia. Aliás, como o mandatário forjado por Othero, o ex-presidente também acusava a esquerda de doutrinar jornalistas que denunciavam a escalada do desmatamento durante seu governo.
Mas Bolsonaro não detém o monopólio dessas desvirtudes, como um breve giro pelo nosso passado presidencial revela. Ele pode até estar mais fresquinho no imaginário popular, “mas uma das ideias do livro é justamente mostrar que muitas das suas atitudes não foram criadas por ele, apenas copiadas de presidentes anteriores”, afirma a autora.
Getúlio Vargas é o maior modelo para o líder imaginado pela escritora. Bráulio incinera livros que considera subversivos, e cabe aqui lembrar a queima de obras em 1937, primeiro ano da ditadura varguista. Arderam títulos tomados como simpatizantes do comunismo muitos deles escritos por Jorge Amado. Ele também profere frases atribuídas a Getúlio, como a que define constituições como virgens, feitas para serem violadas.
E muito antes de Bolsonaro tivemos Floriano Peixoto. Segundo presidente brasileiro, o marechal encantou setores militares e da classe média com seus modos rudes e sua vocação para o autoritarismo. Floriano também apostava num nacionalismo hiperbólico e, tal qual Bolsonaro, não seguiu o rito democrático de passar a faixa presidencial a seu sucessor.
A ficção adiciona à realidade notas de escracho mais escancaradas. Bráulio, por exemplo, tem uma ereção ao ensaiar seu primeiro discurso como candidato do PAU (Partido Armamentista Ufanista). Pelado.
Podemos ver trechos que acabaram cortados do texto final que ele escolheu, mais careta. Um dos que ficaram de fora: “Tô louco de tesão pra fuder com a República, hum! Essa bela mulher branca de peitos sugestivamente à mostra, cabelos esvoaçantes e um barrete da liberdade na cabeça”.
Estudiosa de Hilda Hilst, que trouxe o pornô à alta literatura, e autora do compilado de poesias “Oswald Pede a Tarsila que Lave suas Cuecas”, Othero encontra no humor e no erotismo um canal para “fazer a gente olhar as coisas com outra perspectiva”.
“É muito transgressor imaginar o homem mais poderoso do país dando o cu, numa situação totalmente vulnerável. Isso facilita a política a falar a língua do povo. Lembra que os grandes líderes também são humanos: mijam, cagam, trepam.”
O próprio gênero da pornochanchada, lembra ela, surge como uma revolta contra a ditadura militar. “A primeira coisa que os governos autoritários censuram é o corpo e a sexualidade: eles querem tirar o tesão da população. Sem isso, é mais fácil oprimir. Um povo que goza não se deixa dominar.”
Batizar de Plazil esta pátria fantasiosa, com inspiração no fármaco para distúrbios gastrointestinais, reforça as tintas escatológicas na saga do presidente pornográfico. Desde a colonização, os plazileiros padecem de um “enjoo milenar” que provoca neles constante vontade de vomitar.
É como escreveu Hilda Hilst certa vez sobre seu país: “Pobre macho, de joelhos, de quatro. É este o Brasil, o tempo todo enrabado”. Othero é particularmente afeita dessa sentença. “É uma representação precisa e muito brasileira para falar de imperialismo e colonialismo.”
O PRESIDENTE PORNÔ
Preço R$ 74,90 (248 págs.); R$ 39,90 (ebook)
Autoria Bruna Kalil Othero
Editora Companhia das Letras
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress