BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O número de armas de cidadãos comuns mais que dobrou ao longo de grande parte da gestão de Jair Bolsonaro (PL), de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado nesta quinta (20). Os números refletem a série de flexibilizações normativas nos últimos anos e o incentivo sistemático por parte do governo passado.
O número total de armas com registro ativo no Sinarm (Sistema Nacional de Armas, da Polícia Federal) chegou a 1,5 milhão em 2022, um crescimento de 47,5% em relação a 2019. Naquele ano, o primeiro do governo Bolsonaro, foi concedido acesso a mais calibres tanto para cidadãos comuns quanto para os chamados CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores). O relatório não traz dados de 2018 referentes a armas.
Já a quantidade de armas entre cidadãos comuns foi de 803 mil em 2022, um crescimento de 116% no mesmo período. Essa categoria detinha cerca de um terço do universo total de armas considerado pela pesquisa em 2019, mas agora o percentual alcançou 51%.
No anuário de 2023, no entanto, não está disponível o número de armas registradas para CACs. Esse grupo também teve um aumento significativo e alcançou um número ainda maior em julho do ano passado de 1 milhão de armas, de acordo com dados do Exército revelados no ano passado.
Também foi observado um aumento significativo na compra de munições no varejo em 2022, com um crescimento de 159% em relação a 2019. Para os clubes de tiro desportivo, o aumento foi de 134%; para pessoas que se identificam como CACs no momento da compra, o crescimento foi de 17%.
Roberto Uchôa, especialista do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, diz que, mesmo com o rápido crescimento de armas e com evidências de desvios para o mercado ilegal, o número de apreensões foi na contramão da tendência e teve redução.
Em 2022, houve uma redução de 12% no número de armas apreendidas pelas forças estaduais de segurança, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal em comparação com 2021. Ao analisar especificamente as apreensões feitas pelas secretarias estaduais, observa-se uma queda de 13,6% em 2022 em relação a 2019.
Os dados de apreensões de armas pelas secretarias estaduais e de registro ativo de armas do cidadão comum no Sinarm de 2019 e 2020 foram extraídos pela reportagem de edições anteriores do anuário.
“Os registros mostram quase que uma ausência de priorização da retirada de armas de fogo ilegais de circulação e da quase completa inexistência de trabalhos investigativos e de inteligência policial mais estruturados, que coloquem o desvio de armas de fogo entre o mercado legal e ilegal no centro da estratégia”, disse.
Uchôa destaca que os governos deveriam concentrar esforços no combate às rotas usadas pelas armas, tanto as legais quanto as ilegais, até chegarem às mãos dos criminosos. Ele ressalta que apenas os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo possuem delegacias especializadas nesse assunto.
Nesta semana, o tema das armas deve ganhar destaque novamente, uma vez que há expectativa de que o presidente Lula (PT) assine um decreto que regulamentará uma nova política de armas no país. O ato está previsto para sexta-feira (21).
O decreto prevê que a Polícia Federal passe a ser responsável pela concessão de registro e autorização para aquisição de armas pelos CACs, além da fiscalização de clubes de tiro. Atualmente, os CACs são de responsabilidade do Exército Brasileiro, enquanto a aquisição de armas de fogo por cidadãos comuns para defesa pessoal é de responsabilidade da Polícia Federal.
Parte das pessoas que desejavam portar armas de fogo de forma legal buscaram se tornar CACs devido à possibilidade de obter autorização para o porte de trânsito, que autoriza andar com a arma municiada do local de guarda até o local de treinamento.
O processo de flexibilização em relação ao porte de trânsito teve início ainda durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB). O novo decreto que está sendo proposto irá manter a proibição de a arma estar municiada durante o deslocamento, medida já adotada no decreto editado por Lula em 1º de janeiro.
Como a Folha de S.Paulo mostrou, a brechas faziam com que os caçadores, atiradores e colecionadores aproveitem para andarem armados mesmo quando não estão a caminho dos locais de prática de tiro ou caça.
A leitura de membros do governo é de que o Exército falhou na fiscalização de CACs durante o governo de Bolsonaro e que haveria mais controle na Polícia Federal.
O novo decreto sobre armas em preparação pelo governo Lula também deve criar um programa de recompra para adquirir armas de CACs, restringir o uso de fuzis e estabelecer que clubes de tiro fiquem afastados de escolas.
Uchôa avalia que, mesmo com as mudanças que podem ocorrer no novo decreto, o país ainda enfrentará um cenário preocupante, uma vez que as armas adquiridas tanto por cidadãos comuns quanto por CACs permanecerão em circulação.
Para ele, a Polícia Federal terá um grande desafio ao lidar com o grande número de armas pertencentes aos 783 mil CACs. Somente no banco de dados da PF, há 1.532.803 armas de fogo com registro expirado ou seja, armas cujos proprietários não cumpriram a obrigação legal de renovar suas licenças dentro do prazo estipulado.
“São armas que o Estado brasileiro não possui ciência de seu paradeiro e para as quais não houve qualquer tipo de fiscalização e sanção”, explicou.
A flexibilização de Bolsonaro voltada ao cidadão comum multiplicou a quantidade de armas e munições autorizadas e liberou até mesmo a compra de fuzil.
O então presidente defendeu armar a população por diversas vezes. “Eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!”, disse em abril de 2020, durante reunião ministerial.
Em outro momento em que se encontrava em uma crise institucional, em agosto de 2021, ele disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada que defendia que todos pudessem ter um fuzil. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado.”
RAQUEL LOPES / Folhapress