SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – Só no último mês, Elis Regina (1945-1982) e Luiz Gonzaga (1912-1989) foram “ressuscitados” por meio da inteligência artificial. Ela, para um comercial publicitário. Ele, para um show de João Gomes.
Alguns, como Madonna, 64, já começam a se preocupar com o uso da tecnologia. A cantora, que passou por uma internação recente na UTI, proibiu uso de hologramas com sua imagem em shows póstumos.
A tecnologia promete causar vários impactos no entretenimento. Em entrevista ao UOL, Thoran Rodrigues, CEO e fundador da BigDataCorp, citou 3 principais tendências -que podem causar a existência de filmes sem atores e o fim dos dubladores, por exemplo.
PRODUÇÃO DE CONTEÚDO POR IA
A produção de conteúdo textual, como livros e contos, feitas pela IA já é realidade. “Essa tendência vai se expandir cada vez mais. Se o conteúdo não for totalmente gerado pela inteligência artificial, provavelmente vai ser parcialmente. Roteiros de séries, de filmes, etc., sendo redigidos parcialmente ou totalmente por IA”, diz Thoran.
Uma das demandas da greve dos roteiristas e atores em Hollywood já é que se coloque um freio no uso de ferramentas de inteligência artificial para a produção de conteúdo.
CÓPIAS DIGITAIS
Outra tendência é a utilização de cópias digitais de pessoas para a produção de conteúdo -como no comercial com Elis. “Esse tipo de geração de conteúdo artificial, baseado em pessoas que ainda estão vivas ou que já faleceram, é uma tendência, porque o artista ganha a possibilidade de explorar mais a sua imagem. Você pode, no final, licenciar a sua cópia digital para um monte de gente”.
“Há a possibilidade também de criar encontros, seja com quem já faleceu, com gente que de repente não fala o mesmo idioma, não está no mesmo lugar”, disse Thoran Rodrigues
Mas há o perigo da má utilização da tecnologia. Uma música com as vozes de Drake e The Weeknd, por exemplo, foi feita sem a autorização dos artistas. “Sempre há o perigo dessa cópia digital ser usada de uma forma que talvez a pessoa não concorde […] Do mesmo jeito que você pode usar para maximizar a sua exposição, alguém pode usar para criar um conteúdo fazendo você dizer alguma coisa que na vida real você jamais diria”.
“Com certeza vai ter muita discussão contratual, muitas discussões bastante sofisticadas sobre direito de imagem, propriedade intelectual, quem pode fazer o quê com a imagem e situação, quem retém os direitos, como é que você vai ser remunerado por isso, etc.”, explica Thoran.
PERSONAGENS SINTÉTICOS
Os personagens sintéticos já eram uma realidade na indústria de jogos, mas a tendência é que isso se expanda para outros produtos. “A gente está falando de imbuir esses personagens que são totalmente sintéticos, com um nível de inteligência e capacidade de conversação e de interação. Podemos falar de filmes sem nenhum ator de fato, você só tem o rosto, é uma pessoa que não existe. E sem usar animação”.
A expectativa é que, com o tempo, se torne impossível distinguir o que é real e o que é IA. “No vídeo é muito mais fácil a gente discernir porque o custo e o trabalho de produzir um vídeo 100% perfeito ainda é muito alto hoje, mas outros tipos de conteúdo, como foto, texto, a própria simulação da voz, a gente já não consegue mais distinguir uma coisa da outra, pelo menos não sem um auxílio”.
Provavelmente, existirão certificados digitais, para diferenciar os tipos de conteúdo.
PROFISSÕES VÃO ACABAR?
Alguns profissionais, como dubladores, já se preocupam com um possível fim de suas profissões causado pelo avanço da IA. Uma petição que pede a proibição do uso da tecnologia já conta com mais de 14 mil assinaturas
Para Thoran, a substituição de alguns profissionais é “inevitável”. Ele exemplifica com outras profissões extintas no passado com o avanço da tecnologia, como telefonistas.
O especialista ressalta que a tecnologia também cria novas funções: “A gente tem dois desafios. O primeiro é aprender a usar esse ferramental para poder fazer o seu trabalho de forma mais eficiente, e o segundo é mais da sociedade, de dar o apoio necessário para as pessoas que estão tendo seus trabalhos automatizados, para que elas possam adquirir o conhecimento, habilidades, etc. que precisam ter para conseguir novos empregos dado essa nova realidade tecnológica”.
“A questão não é que a inteligência artificial vai substituir o seu trabalho ou vai acabar com o seu trabalho. Alguém que faz o seu trabalho e que sabe trabalhar com inteligência artificial, para fazer o trabalho de uma forma mais eficiente, vai substituir o seu trabalho”, disse Thoran Rodrigues
CONTEÚDO “PREMIUM” E CONTEUDO DO IA
Para o especialista, existirá uma divisão dos tipos de conteúdos. A arte produzida por pessoas vai se tornar “premium”, ou seja, ainda mais valorizada.
E o mercado vai se tornar mais competitivo. “O músico, o cantor, o próprio instrumentalista, talvez ele seja substituído porque eu posso produzir aquele conteúdo usando a inteligência artificial. Eu posso colocar a IA para tocar os instrumentos e cantar, mas alguém tem que produzir aquele conteúdo”.
“Você pode eventualmente colocar a própria inteligência artificial para produzir, mas no final você precisa de alguém que está orquestrando todas essas ferramentas para produzir o conteúdo do outro lado e fazer o upload daquilo para uma plataforma. O mercado se torna mais difícil. Você vai precisar ser muito melhor para se destacar”, diz Thoran Rodrigues.
HERDEIROS PODEM DECIDIR O QUE FAZER COM A IMAGEM DE QUEM JÁ MORREU?
O UOL conversou com José Mauro Machado, sócio de Pinheiro Neto Advogados, que atua nas áreas de propriedade intelectual e tecnologia. Ele explicou a diferença entre direitos autorais e direito de imagem.
O direito autoral recai sobre as obras do autor e tem validade de 70 anos após a morte. Nesse período, os herdeiros podem cobrar direitos autorais relativos ao uso da obra autoral. Após 70 anos, a obra cai em domínio público e qualquer pessoa pode utilizar.
Já o direito de imagem recai sobre a voz, as feições e a imagem da pessoa propriamente dita. “A lei brasileira não trata desse assunto, diferentemente de obras artísticas. A lei diz apenas que os herdeiros vão poder zelar pela imagem das pessoas falecidas da sua família, das quais elas são herdeiros”, diz Jorge
“O que a Justiça brasileira tem reconhecido é que os herdeiros podem impedir o uso comercial ou também podem licenciar o uso de imagem de pessoas falecidas da sua família. Todo uso comercial precisa ser aprovado e licenciado pelos herdeiros. Não havendo autorização, o que a Justiça brasileira, os tribunais têm reconhecido é que os herdeiros podem pedir uma indenização e impedir o uso desautorizado”, explica.
Quem não quiser o uso de sua imagem após a morte deve expressar isso em testamento, como fez Madonna. “O mais indicado é que conste claramente em testamento como o titular quer e não quer que a sua imagem seja utilizada. Com essa questão de metaverso, inteligência artificial, deepfakes, eu acho que essas questões vão se tornar cada vez mais comuns em testamentos de pessoas públicas, que vão explicar de uma maneira mais clara nos seus testamentos como querem que as suas imagens sejam utilizadas”.
REGULAMENTAÇÃO
Para Thoran Rodrigues, a regulamentação da IA é importante, mas não deve acontecer de forma rápida: “[O desafio é] fazer uma regulamentação que seja genérica o suficiente para abrir espaço para a inovação futura, mas que, ao mesmo tempo, seja dura o suficiente para não virar um negócio que depois ninguém respeita, que não tem como ser fiscalizado”.
“Esse ponto de equilíbrio é difícil e eu acho que não dá para você fazer isso rápido. Infelizmente, é uma coisa que precisa de um pouquinho mais de tempo”, disse.
ANE CRISTINA / Folhapress