O barulho dos gritos ficou gravado na minha mente, diz sobrevivente da chacina da Candelária

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – No rosto de Katia Wanessa Menezes estão as marcas dos 12 anos que morou nas ruas do Rio de Janeiro, entre 1989 até 2001. Foi nesse período que viveu uma das noites mais difíceis de sua vida e que ficaria presa em sua memória para sempre: a chacina da Candelária, em 23 de julho de 1993.

Ela tinha 13 anos quando o grupo formado por policiais e ex-PMs abriu fogo contra as mais de 70 crianças e adolescente que moravam no local, no centro da capital fluminense. Aos 43 anos, ela ainda se arrepia ao lembrar do episódio.

Foi justamente por causa dessas memórias que Wanessa, como prefere ser chamada, decidiu se afastar de tudo que era ligado ao caso e, como ela mesmo define, se esconder. Só este ano que retomou o contato com a artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, que acolheu os jovens depois do ataque. Também foi recentemente que a agora empregada doméstica contou aos filhos o que viveu.

“Não queria contato com nada nem ninguém. Não queria me lembrar daquilo, porque me lembrava das minhas duas vidas, da minha família em casa e da família que me abraçou na rua”, conta.

Wanessa fugiu aos 9 anos da casa em que morava com o pai, no Morro da Congonha, em Madureira, zona norte do Rio. Sua mãe tinha morrido há pouco tempo devido a problemas nos rins, e seus dois irmãos, bem mais velhos que ela, já não moravam mais com eles.

Ela conta que um dia seu pai ficou bêbado e tentou abusar sexualmente dela. “Ele me pegou pelo braço e disse ‘você vai ter que ser minha mulher agora’. Eu consegui me soltar dele e fugi pela janela”, diz Wanessa, que afirma que nunca ter comentado sobre o assunto com seus irmãos para “não sujar a imagem do pai”.

Na rua, foi morar na região da Central do Brasil e, em seguida, se aproximou dos jovens da Candelária, ambos no centro do Rio. Ela então decidiu se juntar ao grupo. “Eles tinham uma regra que um era responsável pelo outro, e que os mais velhos protegiam os mais novos”.

Além de acolhida, Wanessa se identificava com a “nova família”. De acordo com ela, todos que chegavam à Candelária tinham a sua própria história, e muitos tinham fugido de abusos dentro de casa. A sobrevivente lembra de um menino, em particular, que ela apelidou de Pirroto.

“Ele tinha muitas marcas nas costas, e eu ficava intrigada. Um dia me contou que eram queimaduras de cigarro. E não era uma só, as costas deles eram toda tomada de marca de cigarro”, diz Wanessa, que completa: “Ele tinha chegado lá há pouco tempo, então quer dizer que ele já vinha sofrendo abuso em casa há bastante tempo”.

NOITE DO CRIME

Quando aconteceu a chacina, Wanessa conta que tinha acordado um pouco antes dos assassinos chegarem ao local. Sem sono, pensou em andar até o chafariz que fica em frente à Igreja, mas logo nos primeiros passos ouviu os tiros. Ela diz que pegou as duas meninas que estavam do seu lado, Simone e Gina, e as jogou para dentro de um bueiro. Depois, se escondeu debaixo de um carro.

“Só escutei os tiros e vi um [dos garotos] caindo no chão. Todo mundo gritava ‘corre, corre, corre’. Foi o barulho dos gritos que ficou gravado na minha mente. Eu fiquei bastante tempo escutando aqueles gritos. Eu dormia e só escutava ‘corre’ e aquela ‘choração’ no fundo. É horrível”.

Depois da chacina, Wanessa chegou a ficar em dois abrigos para crianças e adolescentes, mas, em pouco tempo, decidiu voltar a morar nas ruas.

A mulher de 43 anos conta que tinha contatos esporádicos com os irmãos e chegava a frequentar a casa deles. Porém, sempre que o pai aparecia, fugia novamente.

“A rua não é a mesma coisa que você vê de dia”, ela continua. “Você está parado e chega um carro para te agredir. Você passa e escuta ‘tá com fome? Vamos ali fazer um negocinho’. A rua é horrível, horrível”.

Para tapear a fome, Wanessa relata que usava cola de sapateiro. O efeito do produto dava a impressão de estar saciada. “Com a cola, você comia um pão e depois poderia ficar semanas sem comer. Só tinha que beber água, mas isso dava para fazer em qualquer lugar”, conta.

DESEJO DE FAMÍLIA

Wanessa diz que sempre sonhou em ter sua família desde o tempo em que morava na Candelária.

Três anos depois do massacre, teve seu primeiro filho. Ela continuava sem teto e estava morando em Marechal Hermes, bairro na zona norte do Rio.

O pai da criança também era morador de rua. Eles cuidaram juntos do filho até ele ter pouco mais de um ano. Depois, o bebê foi para a casa da família paterna, e ficou lá até os 15 anos, quando passou a morar com a mãe.

Wanessa saiu das ruas aos 21 anos, quando soube que seu pai tinha morrido. A sobrevivente da chacina voltou, então, para a mesma casa da qual tinha fugido, aos 9. É lá que mora até hoje.

Ela teve mais quatro filhos. Três, de 18, 17 e 10 anos, são frutos do mesmo casamento. Já a caçula, de 1 ano e 3 meses, é de um relacionamento mais recente, que já terminou. Hoje, Wanessa se diz orgulhosa de ser mãe solo.

Quatros filhos moram com ela, apenas o mais velho, de 27, saiu de casa. Wanessa conta que ele é usuário de crack e vive de bicos pela cidade. A mãe diz que sua luta hoje é para que ele não viva o mesmo que ela passou e consiga sair dessa.

“Hoje, se a rua não te mata, a droga mata”, diz Wanessa, que afirma só ter usado cola no período em que não tinha casa.

“Eu fiz sozinha minha família. Sempre falei que teria uma e consegui”, fala, longo completando: “Queria ter cinco filhos, porque se eu morresse um irmão ia ajudar o outro”.

CAMILA ZARUR / Folhapress

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