ZONA DESMILITARIZADAS E SEUL, COREIA DO SUL (FOLHAPRESS) – O armistício que encerrou a Guerra da Coreia completa 70 anos nesta quinta (27) em meio a um dos períodos mais agressivos da relação entre o Sul capitalista e o Norte comunista da península dividida. Poderia ser chamado de um fracasso, já que a paz e a reunificação nunca vieram, mas embute um paradoxo.
Como a guerra que devastou a região entre 1950 e 1953 nunca se repetiu, os termos daquele arranjo viraram referência. São citados por diplomatas e especialistas como talvez os mais aceitáveis para Moscou e Kiev se e quando russos e ucranianos sentarem à mesa para negociar o fim do conflito que começou há 18 meses.
A relação entre Seul e Pyongyang sempre foi pendular, a partir do momento em que começaram a discutir termos de sua normalização, em 1972. Naquele ano, princípios de reunificação foram acertados por dois ditadores, Kim Il-sung (Norte) e Park Chung-hee (Sul), mas ao longo dos anos houve rompimentos, aproximações e novas rusgas como no momento atual.
Tecnicamente, Coreia do Sul e do Norte estão em guerra até hoje. É algo que se vê de forma palpável, ainda que diluída, ao andar pela capital do país ao sul do paralelo 38, a marca que guia a fronteira formada pela DMZ (Zona Desmilitarizada, na sigla inglesa), uma faixa de 250 km com 4 km de largura que ironicamente margeia dois dos mais armados locais do planeta.
Toda passagem subterrânea, e Seul é pródiga com suas inacreditáveis 768 estações de metrô e uma miríade de shoppings sob a terra, é um abrigo para o caso de bombardeio bem sinalizado como tal. Soldados abundam pelas ruas, trens e ônibus.
Cartazes explicando o que fazer em caso de explosões nucleares, biológicas ou químicas estão em museus e prédios públicos, e todo celular operando rede local recebe mensagens com alertas quando Kim Jong-un resolve disparar um de seus foguetes.
Quando a reportagem esteve no Sul, em maio, a campanha de lançamentos havia mantido fechada a principal atração da DMZ, o conjunto de sete galpões em que o armistício foi negociado e assinado, em Panmunjeon conhecido como JSA (Área de Segurança Conjunta, na sigla inglesa). Foi por lá que, dois meses depois, um soldado americano fugiu para o Norte.
Ainda assim, é possível visitar torres de observação da Coreia do Norte, a recém-reaberta ponte da Liberdade (um dos pontos de troca de prisioneiros após a guerra), museus, monumentos e o impressionante túnel de infiltração construído pelo Norte e descoberto após delação de desertores. É algo sempre sujeito à tensão do momento, e o local tem histórico de incidentes violentos.
Em todos os pontos, o trato é delicado, reflexo das tentativas de obedecer ao tais três pontos de 1972: unicidade étnica, renúncia à guerra e negociação sem atores externos provavelmente o mais ilusório dos itens da pauta. Assim, é até possível comprar bonequinhos de soldados dos dois lados (cerca de R$ 60 cada), mas não há camisetas ridicularizando Kim, por exemplo.
A opacidade quase absoluta do Norte, que até permite visitas ocasionais, mas sob completa guarda do Estado, não permitiu uma observação de como a propaganda trata hoje da questão no cotidiano. Para a data do armistício em si, recebeu uma delegação liderada pelo ministro da Defesa russo, Serguei Choigu, presente segundo a pasta “para celebrar a vitória do povo coreano”. Moscou, rival de Washington na Guerra Fria 2.0 ao lado de Pequim, é uma rara apoiadora de Pyongyang. Enviados chineses também estão na capital norte-coreana.
Na DMZ sul-coreana, o tom geral é pacífico, de busca por um consenso inalcançável sem a capitulação de um dos lados ao sistema do outro, embora haja a autoexplicativa possibilidade para o turista de usar um estande de tiro por R$ 250 a mais na conta do passeio (sem a JSA, em média R$ 300).
Já no Memorial da Guerra de Seul, um museu fascinante coalhado de material militar, a narrativa é mais dura, e coaduna com a crítica aos atores externos, no caso os soviéticos e chineses que apoiaram Kim, o avô do atual ditador, em sua invasão com 135 mil homens de 1950. O país estava dividido desde que o Japão, que havia anexado a península em 1910, foi derrotado na Segunda Guerra Mundial em 1945.
Ao estilo Alemanha, o território foi partido na altura do paralelo 38 entre zonas americana e sino-soviética de ocupação. Em 1948, ambas as repúblicas, do sul e do norte, foram declaradas, o que acelerou os planos de Kim, sob o beneplácito de Josef Stálin e Mao Tsé-tung.
Ele teve grande sucesso na etapa inicial da guerra, iniciada em 25 de junho. Seul caiu na primeira semana, e em setembro suas forças haviam encurralado os sul-coreanos e a força aprovada pela ONU liderada pelos EUA no sul da península. Só que o Exército de Kim foi esfarelado no processo.
A partir dali, com um desembarque ousado perto da capital, os americanos retomaram a iniciativa e empurraram os comunistas para o norte. Ao cruzarem a fronteira, os chineses intervieram militarmente, e neste processo Seul foi retomada, caiu novamente e voltou a ficar em mãos dos capitalistas.
Em 1951, as negociações começaram, secretamente. Ainda haveria dois anos de guerra pela frente, com ambos os lados tentando estabelecer suas fronteiras, que acabaram congeladas com a DMZ. Não é um processo muito diferente do que se vê neste momento na Ucrânia. Daí os paralelos com o caso coreano, exceto pelo fato de que não há nenhuma negociação aparente até aqui.
O papel do Japão também é lembrado em outras exposições correlatas no Memorial, e a aproximação atual entre Seul e Tóquio ainda não limpou a barra dos nipônicos, que promoveram uma ocupação brutal da península. O contraste com a versão dos fatos em museus japoneses só converge na ideia de que a culpa sempre foi de potências estrangeiras ocidentais, na versão do Japão.
O fator externo segue vital, para o desgosto dos redatores de comunicados coreanos. Depois que o país democratizou-se, em 1987, houve movimentos mais intensos para tentar conquistar o Norte com investimentos econômicos e sociais, sempre calcados na trágica história das 10 milhões de famílias separadas pelo conflito.
Estimas conservadoras falam em duras perdas, somando de 2,5 milhões a 3 milhões de mortos. Desses, a maioria era civil (1 milhão no Sul, 600 mil no Norte), 183 mil soldados chineses e 40 mil, da força da ONU (maioria, 33 mil, americana). O restante, militares do Sul e do Norte, números variáveis. Até hoje há 28 mil militares dos EUA no Sul.
Em 1998, após Washington e Pyongyang se acertarem para tentar conter o programa nuclear do Norte, uma armadilha demonstrada pela explosão da bomba atômica norte-coreana em 2006, o Sul lançou sua Política da Brilho do Sol, bombardeada a partir da chegada de George W. Bush à Casa Branca, em 2000, e enfim encerrada em 2010.
O resto é história recente: Donald Trump ameaçou o “homem-foguete” Kim Jong-un com “fogo e fúria”, só para recebê-lo à mesa em três ocasiões. Foi um fracasso, já que os americanos querem o impossível, a desmilitarização nuclear do Norte e a bomba é o seguro existencial da ditadura excêntrica dos Kim, além de seu apoio nem sempre consistente por parte de Pequim e de Moscou.
A reaproximação com o Sul refluiu, a pandemia fechou o regime ainda mais, e desde o ano passado Kim faz testes cada vez mais ousados de mísseis. Desta vez, não conseguiu trazer ninguém para negociar até aqui, ao contrário: o assertivo presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol e um Joe Biden em ritmo de Guerra Fria 2.0 acertaram um discurso belicista e ameaçador.
Como ocorreu ao longo da primeira Guerra Fria e nos confusos anos após seu final, em 1991, a Coreia do Norte sempre agiu balanceando o interesse dos Kim ao cenário externo. Se a história se repetirá, e a diástole virá após a atual sístole da relação com o Sul, é algo incerto a esta altura.
IGOR GIELOW / Folhapress