Como o livro ‘As Homicidas’ mostra que até as assassinas sofrem efeitos do machismo

BOGOTÁ, COLÔMBIA (FOLHAPRESS) – O título do livro de Alia Trabucco Zerán é “As Homicidas”, ou seja, mulheres que matam. Mais claro, impossível. Ainda assim, não são poucas as pessoas que se aproximam da escritora chilena para falar sobre o nome e soltam comentários como “que tristeza que é a violência contra a mulher”.

“Uma mulher que mata é uma coisa que soa tão aberrante que parece que as pessoas não veem, ou não têm mecanismos para interpretar. É claro que o assassinato cometido por mulheres existiu sempre em menor grau em nossa sociedade, mas eles ocorrem e quis investigar os tantos aspectos interessantes disso”, conta a autora em entrevista.

“As Homicidas” recebeu o British Booker Prize do ano passado e agora é lançado no Brasil. Trabucco, escritora de 40 anos, estudou espanhol e estudos latino-americanos na Universidade de Londres e seu primeiro livro, “La Resta”, foi indicado ao prestigioso prêmio Booker em 2019.

Por meio daquilo que se reportou nos meios de comunicação e nos registros judiciais, a autora resgatou as histórias reais de Corina Rojas, Rosa Faúndez, María Carolina Geel e María Teresa Alfaro, mulheres que, ao longo do século 20, cometeram assassinatos.

No caso de Rojas, todo mundo até hoje visita o local do crime, no qual estava apenas o casal, e sai com muitas explicações: foi alguém de fora, foi um assalto. Um longo caminho até concluir que teria sido ela própria quem matou o marido. “Quando uma mulher comete um assassinato, algo excepcional, é como se transgredisse não só uma lei penal, mas uma lei moral feminina.”

Para “pôr as coisas em seu lugar”, de certa forma, a sociedade parece buscar, desesperada, qualquer outra classificação para essa pessoa. “Devolvem essa mulher a seu lugar dizendo, bem, na verdade não é uma mulher normal, ou está louca, ou teve um ataque de ciúmes ou é uma mulher masculina”, diz Trabucco.

Para a escritora, tanto no caso de a mulher ser a responsável por uma morte como no de ser vítima de violência de gênero, ela não tem como escapar de um tratamento que a diminui.

“Sempre a mulher ou tem a culpa do crime a que foi submetida ou, quando é a perpetradora, é castigada fazendo com que desapareçam seus traços de mulher. Daí as justificativas, ‘estava louca’, ‘era um demônio’. Essas coisas para mim são o sinal mais claro de que vivemos numa sociedade patriarcal. As mulheres, guardadas as proporções de um e outro caso, são sempre dignas de ser examinadas e despersonalizadas.”

No caso de Rosa Faúndes, a narrativa para que a sociedade aceitasse o que ela tinha feito, segundo a autora, foi a de dizer: “fiquem tranquilos porque é uma não mulher”. Se é uma medida que visa “tranquilizar a sociedade”, na descrição da escritora, o que isso termina por fazer é cometer outro ato de violência.

“As feministas vão me tratar como traidora. Depois de anos lutando pelas leis contra a violência doméstica, pela criação do termo ‘feminicídio’, eu apareço para manchar a imagem das mulheres”, afirma, rindo. “Mas não faço isso com outra disposição que não seja a da investigação literária.”

Um dos maiores obstáculos que Trabucco encontrou em sua pesquisa para a obra, porém, foi outro —o do acesso a documentos num sistema viciado por pactos de silêncio desde a época da ditadura militar, que vigorou no Chile de 1973 a 1990.

“Cada vez que eu tentava encontrar um expediente ou uma sentença, havia no ar a desconfiança de que eu poderia estar buscando outro tipo de coisa. Isso tem a ver com o fato de que o Chile manteve em silêncio a verdade sobre as vítimas da ditadura sempre por meio de pactos de segredo que envolveram militares, principalmente, mas também arquivistas e funcionários do sistema judicial.”

Foi por isso que a autora decidiu incluir no livro diários que esclarecessem como ela encontrou e lidou com essas dificuldades durante todo o processo de escritura.

Trabucco confessa que uma certa fascinação pela violência e pela morte a levou a sentir atração por esses temas. “Na verdade, são os grandes assuntos do nosso tempo. Além disso, a morte sempre foi central na literatura. Isso, creio eu, se deve ao fato de que vivemos muito de costas para a morte —e quando ela aparece, produz em nós uma grande atração.”

Às vésperas da data em que se completam 50 anos do golpe de Estado no Chile, Trabucco se diz muito preocupada com a polarização do país.

“Estão surgindo forças de extrema direita, e se discutem coisas tão básicas, que já tínhamos superado antes, por exemplo essa relativização do pinochetismo”, afirma, em referência à candidatura de José Antonio Kast, que elogiava o ditador chileno e perdeu para o esquerdista Gabriel Boric na última eleição nacional do país, em 2021.

“Temos um líder partidário que quase chegou à Presidência que dizia que Pinochet foi um estadista. São temas já superados, deveríamos estar em outra página, mas não. Agora temos a possibilidade de que esse sujeito, ou outro que pense assim, chegue ao poder.”

Ao ser questionada sobre em que estante crê que seu livro deveria ser colocado —afinal, se trata de um ensaio de não ficção, mas com ferramentas de ficção e uma parte realmente ficcional—, ela se diverte.

“Adoro confundir as pessoas. Outro dia o encontrei numa livraria de Santiago na seção de autoajuda. Dei risada.”

AS HOMICIDAS

Preço R$ 74,90 (232 págs.); R$ 52,90 (ebook)

Autoria Alia Trabucco Zerán

Editora Fósforo

Tradução Silvia Massimini Felix

SYLVIA COLOMBO / Folhapress

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