SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Todas as semanas, entre terça e quarta-feira, o engenheiro de pesca João Carlos Manzella deixa Ilhabela na balsa das 4h30 rumo a São Paulo. Na urna da van, carrega no máximo 100 quilos de peixes frescos que serão vendidos para restaurantes da capital.
O roteiro de entregas de sua empresa, a Maris.Co, é longo. Passa pela Vila Madalena, onde estão o Cais e o Pasta Shihoma; pela Vila Mariana, onde ficam o AE! Cozinha e a Casa Tucupi; por Higienópolis, bairro do Marcha e Sai; pela Vila Buarque, endereço do Cora; pelo Jardim Paulistano, onde fica o Maní; e pelo Tatuapé, onde se encontra o Cepa -só para citar alguns clientes.
Para os chefs, a entrega é sempre uma surpresa. Como só trabalha com pescadores que usam técnicas artesanais, como linha de mão ou cerco flutuante, Manzella vende a pesca do dia. Quem decide é o mar. “Pago o dobro, para valorizar os pescadores e garantir prioridade”, ele conta.
O método da Maris.Co ajuda a driblar um dos principais gargalos da cadeia do pescado em São Paulo: a logística. “Os pescadores artesanais são muito simples, não conseguem fazer o peixe chegar até nós”, afirma Adriano de Laurentiis, sócio do Cais e cliente da Maris.Co. “Às vezes, recebo espécies que nunca vi, ou só dois peixes, que reservo para os pratos crus.”
Outro gargalo reside nos próprios barcos. Segundo Rodolfo Villar, fundador do Projeto A.Mar, os peixes permaneceriam frescos por muito mais tempo se os pescadores conhecessem técnicas de despesca, ou seja, como tratar corretamente o peixe no momento em que ele sai da água.
“Um dos nossos trabalhos é ensinar às comunidades tradicionais a técnica japonesa de abate ike jime, que induz a morte cerebral para que os peixes não se debatam e morram por asfixia. São 5 minutos a bordo que garantem 90% da qualidade do pescado”, diz Villar.
A falta de informação a respeito da origem dos pescados é outro problema da cadeia -feiras e peixarias são abastecidas por atravessadores, que misturam peixes oriundos da pesca artesanal e cargas de grandes barcos pesqueiros.
O Projeto Nossa Pesca, desenvolvido pela ONG Instituto de Estudos e Empreendedorismo Socioambiental (Iesa) e pela consultoria Paiche, luta para fortalecer esse elo através da instalação de câmeras nos barcos dos pescadores.
Por enquanto, cinco câmeras fabricadas pela norte-americana ShellCatch foram instaladas em pequenas embarcações do litoral norte paulista. As imagens do momento da pesca e os dados do pescador podem ser acessadas através de um QR-Code, exibido nos restaurantes que servem os pescados. Um deles é o Taioba, em Camburi, do chef Eudes Assis.
“O projeto é escalável, pois já foi implantado em 600 barcos de 14 países, mas precisamos de um investidor para aumentar seu alcance. Cada câmera custa cerca de 2 mil dólares e a prefeitura de São Sebastião não tem recursos”, afirma a oceanógrafa Cintia Miyagi, sócia da Paiche.
Soluções como essas são viáveis apenas para quem trabalha em pequena escala. Quem cresce um pouquinho logo se vê obrigado a buscar fornecedores que garantam quantidade. É o caso do chef Dário Costa, proprietário dos restaurantes Churrascada do Mar, em São Paulo, Madê e Paru, em Santos, e Benedita, em Fernando de Noronha.
“Trabalho com pescadores artesanais, mas eles entregam menos de 10% das 2 toneladas semanais que meus restaurantes consomem”, diz Costa.
Para ele, o volume seria maior se houvesse políticas públicas embasadas nas necessidades reais dos pescadores artesanais.
“As leis são elaboradas em gabinetes, por quem nunca viu, na prática, o que acontece no mar. Até os defesos estão errados, porque não consideram diferenças regionais.”
Fundador da peixaria Mar Direto, Cauê Tessuto começou em 2014, pequeno como Manzella, entregando produtos da pesca artesanal diretamente nas mãos dos chefs. Mas a demanda cresceu. Para abastecer seus atuais 300 clientes, 90% da capital, Tessuto assume ter ficado menos radical.
“Evito trabalhar com grandes barcos pesqueiros, porque seria só mais um comprador. Mas virei um frigorífico que emprega 50 pessoas, hoje exijo que os pescadores sejam regularizados. Nem todas as cooperativas têm uma organização mínima voltada para o comércio.”
Vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, o Instituto de Pesca tem se empenhado em resolver mais esse gargalo da cadeia através do projeto Valoriza Pesca.
“A pesca em pequena escala é basicamente informal. As comunidades tradicionais dependem de atravessadores porque só eles têm certificação sanitária e meios para transportar os peixes”, afirma Erika Furlan, pesquisadora do instituto.
O trabalho é lento -segundo Erika, só as conversas preliminares com todas as colônias de pescadores levaram seis meses. “Não é fácil conquistar a confiança deles, mas dependemos dessas informações para criar políticas públicas”, ela diz.
Na opinião do argentino Pablo Inca, chef do restaurante Cora, cozinheiros e consumidores também podem colaborar. “A gente se acostumou a servir tudo o que o cliente quer, mas não deveria ser assim. Não dá para manter determinado peixe no cardápio o tempo todo”, defende.
O paladar engessado do paulista, acredita Erika Furlan, também é um entrave para o fortalecimento da cadeia artesanal no estado, o consumo per capita chega a 10 quilos por ano, mas pouco disso se refere aos peixes locais. “Salmão e panga importados entram na conta, assim como a tilápia de cativeiro. O público prefere filezinhos brancos e sem espinha.”
Defensor de espécies pouco conhecidas da costa paulista, como guaivira, corvina, betara, perna-de-moça e roncador, Dário Costa garante que os chefs de cozinha têm o poder de seduzir o cliente e fazê-lo experimentar peixes novos.
“A sororoca e o carapau já são mais famosos hoje porque, anos atrás, uma turma de cozinheiros começou a falar deles. Os donos de restaurantes e chefs precisam mostrar que só a natureza comanda a escolha do peixe.”
FLÁVIA G. PINHO / Folhapress