SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Uma análise do DNA de 34 pessoas que viveram no atual território brasileiro milhares de anos antes da chegada dos portugueses traz conclusões surpreendentes sobre os principais monumentos pré-históricos do litoral do país. Segundo os novos dados, os célebres sambaquis, colinas artificiais que serviam como centros rituais e sepulturas, parecem ter sido construídos por povos diferentes dependendo da região.
O trabalho, que acaba de sair na revista especializada Nature Ecology & Evolution, elucida ainda as origens genéticas de Luzio, apelido de um esqueleto de 10,4 mil anos que é considerado o ser humano mais antigo do estado de São Paulo. Embora o formato do crânio de Luzio seja diferente do da maioria dos indígenas de hoje, o DNA indica que ele pertencia à mesma grande população ancestral que deu origem aos povos originários que estavam aqui em 1500.
Assina o estudo uma equipe formada por pesquisadores de diversas instituições brasileiras e europeias. O primeiro autor é Tiago Ferraz, do Departamento de Genética da USP (Universidade de São Paulo), e entre os coordenadores do trabalho estão a geneticista Tábita Hünemeier e o arqueólogo André Strauss, ambos também ligados à universidade paulista.
Tanto as origens quanto o destino das populações construtoras dos sambaquis são relativamente enigmáticos. Os morros artificiais, que chegavam a alcançar 30 metros de altura, incluem grandes quantidades de conchas de moluscos, mas tudo indica que não se trata de simples acúmulo ocasionado por descarte.
Isso porque os maiores sambaquis podem incluir até centenas de sepultamentos, bem como estruturas que parecem ter servido para abrigar rituais funerários, restos de refeições que podem ter acompanhado esses funerais e uma grande variedade de pequenas esculturas em pedra, em geral retratando a fauna marinha. Além disso, a disposição das colinas construídas no litoral sugere uma delimitação de territórios e sinalização para grupos aliados ou rivais.
Embora haja exemplos de sambaquis em boa parte da costa brasileira, os principais núcleos das construções são o Sudeste (em locais como a região dos Lagos, no Rio de Janeiro) e o Sul (em Santa Catarina). Há ainda sambaquis fluviais, como aquele em que estava sepultado Luzio, na região do rio Ribeira de Iguape (SP) -há dúvidas sobre a relação entre os sambaquis “de rio” com os costeiros. A principal fase de construção das estruturas é a que vai entre 5.500 anos e 2.200 anos atrás. Depois da última data, o hábito de erigi-los parece ter sido abandonado.
No novo estudo, a equipe analisou variações do DNA de indivíduos que viveram do Pará a Santa Catarina, passando pelo Nordeste, pelo interior de Minas Gerais e pelo litoral do Espírito Santo. As idades vão da de Luzio, o mais antigo integrante da amostra, a cerca de 600 anos atrás, incluindo também diversos indivíduos do período áureo da construção de sambaquis.
Os dados genômicos mostraram, primeiro, que todas essas pessoas pertencem ao grande grupo integrado pelos atuais indígenas. Essa constatação, no entanto, comporta uma considerável diversidade.
Tanto Luzio quanto os indivíduos muito antigos do interior de Minas Gerais por exemplo (a população de Luzia, a mulher mais antiga do Brasil, que emprestou seu apelido ao esqueleto paulista) não têm parentesco próximo com as populações que viveram mais tarde nos sambaquis, que descendem de outros grupos. A julgar pelos dados, a primeira grande leva de ancestrais dos indígenas a colonizar o futuro território brasileiro era formada por subgrupos bastante diversificados geneticamente entre si.
Da mesma forma, os habitantes dos sambaquis do Espírito Santo e os de Santa Catarina também não são parentes próximos, o que sugere que as técnicas de construção dos monumentos e o simbolismo por trás deles podem ter evoluído de forma independente nos dois trechos do litoral -ou então foram passados por contatos culturais, sem que uma única população colonizasse ambos os núcleos sambaquieiros.
Por fim, o trabalho indica que, no fim do período de construção dos sambaquis, há indícios de um aumento da interação dos grupos do litoral com sociedades do interior aparentadas a etnias que os invasores europeus encontrariam diretamente.
Em Santa Catarina, é o caso de grupos falantes de idiomas da família macro-jê, como os atuais kaingang, que têm parentes nos sambaquis com idade pouco acima de 2.000 anos. No Sudeste, há pistas da chegada de falantes das línguas tupis, que chegaram ao litoral vindos da Amazônia por volta dessa época. No entanto, não há indícios de que os novos grupos tenham simplesmente eliminado e substituído os mais antigos, mas sim de que eles tenham se misturado.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress