‘Casa Vazia’ foge do filme social e vê solidão de boiadeiro nos pampas

(FOLHAPRESS) – Jorge Luis Borges, o gênio argentino, escreveu um pensamento esclarecedor sobre os cinemas nacionais. Disse ele que, ao ver um filme estrangeiro, o sujeito sai da Calle Florida, famosa rua de Buenos Aires, e no instante seguinte está no Marrocos ou na Índia. Quando vê um filme nacional (argentino, no caso), o sujeito sai da Calle Florida e no instante seguinte entra na… Calle Florida. A ideia é que o filme estrangeiro nos leva a outros costumes, outras paisagens. O filme nacional tende a nos levar a nós mesmos.

Está aí um perigo que não corremos ao assistir à maior parte dos filmes que nos chegam do Rio Grande do Sul.

Um bom exemplo é este “Casa Vazia”. São raros os filmes que tratam a paisagem dos pampas como tal: não como cenário de aventuras que pouco têm a ver com ela e poderiam, a rigor, acontecer em qualquer outro lugar. Aqui, ao contrário, ela é quase tudo e tem a propriedade de nos conduzir pela ficção.

Estamos em campos extensos, antes usados somente como pastagens, porém mais e mais ocupados pelas plantações de soja. É nesse lugar que vive o boiadeiro Raul, isto é, ex-boiadeiro, já que em função do desemprego passou a ganhar uns tostões ajudando no roubo de gado.

Felizmente o diretor e roteirista Giovani Borba não escolheu o caminho do filme social. Pois sua questão não é o desemprego. O que lhe interessa, ao contrário, ao menos é que se pode depreender das imagens, é descobrir quem é Raul, o homem que ocupa essa paisagem melancólica.

Os olhos de Raul não nos dizem nada. O seu rosto, tampouco. Raul observa o mundo ao seu redor, mas o que ele observa? O que pensa? Que conclusões tira disso? Ele dá a impressão de pensar, mas, se o faz, seus gestos não acompanham as ideias.

O mundo parece mover-se, e os movimentos de Raul apenas se ajustam ao que é dado. Se não há trabalho, pode-se roubar gado. Se o roubo tende a se tornar perigoso, já que os fazendeiros começam a montar patrulhas e a matar os ladrões, sempre é possível recorrer ao cunhado e conseguir trabalho enfrentando os ladrões de gado e ajudando a matá-los.

Um pouco do que Raul evita dizer, as imagens dizem: conforme o lado em que esteja, ele está sujeito a morrer ou a matar. Não há nada a ganhar, exceto a sobrevivência. A casa está vazia, como esclarece o título: a mulher e os filhos sumiram. O vazio da casa parece corresponder ao vazio do próprio vaqueiro. O que ele pretende? Ou melhor, o que pode pretender?

Um raro momento de transcendência: ele vai a uma curandeira e pede uma benzedura. Nesse ponto é interessante a evocação da lenda do negrinho do pastoreio. Raul diz acreditar nela. E o negrinho, conforme a tradição, é aquele que nos ajuda a recuperar algo perdido.

Eis uma rara informação sobre o protagonista. Sua casa é vazia. O que ele pretende recuperar é a mulher e os filhos. Porém, sabemos que o sumiço da família é apenas a parte visível de todas as perdas que esse homem sofreu.

No filme, a câmera demora-se no rosto desse homem, quase indiferente, assim como examina detidamente a paisagem: o pôr do sol, o amanhecer, a noite, quando nada se vê, exceto, ao longe, os faróis de um automóvel ou a luz de uma lanterna. O silêncio quase perfeito.

Há uma condução segura do suspense, suave mas persistente, que acompanha a personagem. Como se, na impossibilidade de sabermos quem é ele, nos perguntássemos o que acontecerá com ele? Aonde o levará a ficção, afinal?

Como de costume no cinema brasileiro recente, estamos diante de uma produção mínima. Ajustada ao assunto que pretende tratar, porém mínima. Ainda assim, nos leva a lugares inesperados, raramente tocados pelos filmes. E a estreia de Giovani Borba pode ser saudade como um desses lampejos felizes da produção sulina, e faz esperar pela continuidade da carreira do cineasta.

CASA VAZIA

Avaliação Bom

Quando Estreia nesta quinta (3) nos cinemas

Classificação Não indicada

Elenco Hugo Noguera, Araci Esteves, Nelson Diniz

Produção Brasil, 2021

Direção Giovani Borba

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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