SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Rebecca Spencer ajudou a Jamaica a passar pela fase de grupos da Copa do Mundo feminina sem sofrer nenhum gol, incluindo o empate por 0 a 0 que eliminou o Brasil na última rodada.
Nnadozie Chiamaka defendeu o pênalti que impediu a canadense Christine Sinclair de se tornar a primeira atleta a marcar em seis Mundiais e, sem ser vazada em dois jogos, levou a Nigéria às oitavas de final.
Juntas, as goleiras das 32 seleções que disputaram a primeira fase da competição na Austrália e na Nova Zelândia foram, ainda, fundamentais para a queda da média de gols sofridos em relação à última Copa.
Nos 44 jogos da fase de grupos deste ano, foram 126 gols em 48 jogos, média de 2,6 por partida. Na Copa de 2019, na França, com 24 participantes, foram 146 gols nos 52 jogos do torneio, uma média de 2,8 bolas na rede por duelo.
Além disso, há quatro anos, 30 jogos (58%) tiveram três gols ou mais. Até agora, na atual edição, 21 duelos (44%) tiveram placares elásticos.
Não são poucos os exemplos deste Mundial que demonstram uma clara evolução na capacidade técnica das jogadoras que desempenham a função mais estigmatizada do futebol feminino.
A última prova foi a atuação da sueca Zecira Musovic. Autora das defesas que pararam os Estados Unidos neste domingo (6), nas oitavas de final, ainda fez duas defesas na disputa de pênaltis. Foi a responsável por eliminar a atual bicampeã e classificar sua seleção para as quartas de final.
O processo ainda está em curso. A estatura média das goleiras desta Copa, por exemplo, é de 1,73 metro, exatamente a mesma da última edição do torneio, em 2019, na França, o que indica uma dificuldade para encontrar goleiras mais altas.
Na competição realizada na Oceania, a mais alta dona da meta é a italiana Francesca Durante, com 1,81 metro. As mais baixas têm 1,65 metro. São elas: Kaylin Swart (África do Sul), Karly Théus (Haiti) e Trần Thị Kim Thanh (Vietnã).
Em quatro anos, se a estatura média se manteve igual, o que mudou foi o desenvolvimento de quesitos tão importantes quanto a altura, como condicionamento físico e cognitivo, tomadas de decisão, jogo com os pés, velocidade de reação, níveis de força e potência, além da cobertura de jogadas aéreas.
São aspectos que levam tempo para ser aprimorados e dependem, sobretudo, de uma boa formação de base, algo que ainda é um obstáculo para a grande maioria das jogadoras.
No Brasil, por exemplo, faz apenas quatro temporadas que a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) passou a organizar campeonatos juniores. Em 2019, a entidade criou o Campeonato Brasileiro feminino sub-18. No ano passado, a competição mudou sua faixa etária e passou a ser um torneio sub-20.
Num passado ainda recente, isso era impensável para as jogadoras. Margarete Maria Pioresan ou apenas Meg, 68, tinha 35 anos e não jogava futebol desde 1988 quando decidiu se dedicar à seleção brasileira de handebol, que disputaria o Mundial da categoria em 1989.
No ano seguinte, aposentada das quadras e dos campos, e atuando como professora de educação física, ela foi convencida por Eurico Lira, criador do Radar, base do time brasileiro, a disputar a primeira Copa do Mundo, em 1991, na China.
“Nós, lá atrás, nunca tivemos nada de base. Já jogaram a gente logo na arena dos leões”, lembra Meg em entrevista à Folha. “Mesmo hoje está demorando para desenvolver a base no Brasil”, acrescenta a ex-goleira, titular da seleção brasileiras nas Copas de 1991 e 1995 e nos Jogos Olímpicos de 1996.
Para ela, é nítida a evolução das atuais goleiras. “Finalmente, todos os países que disputam a Copa estão dando treinos dignos para elas”, destaca.
A ex-jogadora recorda que em sua época de atleta havia poucos trabalhos específicos para sua função. Não existia nem sequer a figura do preparador de goleiro nos times femininos, algo que, somado ao baixo número de jogos, prejudica o desenvolvimento da função.
“As goleiras são as que mais sofrem [pela falta de treinos e jogos]”, diz Meg. “Isso afeta não só as goleiras mas também todas as posições de linha. Acontece que as jogadoras de linha podem se ajudar, já a goleira não pode falhar nenhuma vez.”
Titular do Brasil na Copa do Mundo, Letícia Izidora, a Lelê, também é a dona da meta do Corinthians. Neste ano, antes de servir a seleção, ela acumulou apenas 15 partidas pela equipe que lidera o Nacional. Mesmo considerando toda a temporada passada, ela acumulou 34 jogos, somando partidas pela equipe alvinegra e pelo Benfica, onde atuou por empréstimo.
Somente neste ano, ainda sem completar toda a temporada, o goleiro Cássio atuou em 39 jogos pelo time masculino, mesmo não sendo titular em todos os compromissos do clube paulista.
Segundo dados do site Ogol, referência em estatísticas, Lelê acumula 177 partidas por clubes desde 2013.
“As goleiras, de modo geral, tem uma formação tardia. Elas começam jogando no sub-17 ou no sub-20. Um menino começa no sub-11, no sub-9. Até ele chegar ao profissional, são dez anos de vivência. Por isso, a gente vê uma quantidade de gols considerados defensáveis menor no masculino do que no feminino”, diz Edson Junior, preparador de goleiros do time feminino do Corinthians.
Mesmo na elite do futebol feminino não é fácil para elas acumular uma boa bagagem. Entre os países que disputaram a primeira fase da Copa do Mundo, alguns deles possuem ligas de primeira divisão com poucos clubes, como são os casos de Dinamarca (8), Costa Rica (8), Coreia do Sul (8) e Vietnã (7).
No Brasil, são 16. Mesmo em países mais desenvolvidos, o número não é muito maior. A Espanha tem a maior liga feminina da Europa, com 16. Nos Estados Unidos, são 12. A maior é a da Argentina, com 20.
“Qualquer comparação do futebol feminino e do masculino tem que levar esses números em consideração porque eles são muito discrepantes”, ressalta Edson Junior.
LUCIANO TRINDADE / Folhapress