PF pede acesso a acordos para apurar suspeita de abuso em operação contra Cancellier

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Os autos da ação criminal e de acordos relacionados a suspeitas de desvios na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) viraram alvo de análise da Polícia Federal após o ministro Flávio Dino, da Justiça, pedir que fossem apurados eventuais indícios de arbitrariedades ou abusos por parte da operação que tratou do caso.

Deflagrada em 2017, a operação Ouvidos Moucos virou um dos principais motivos de críticas a investigações com métodos similares aos da Lava Jato por causa do suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier, que tinha sido afastado da função.

Ele havia sido preso por supostamente tentar atrapalhar investigação da corregedoria da universidade -o que ele sempre negou-, mas não era suspeito de corrupção.

Três anos depois, em 2020, a juíza Janaína Cassol Machado, da 1ª Vara Federal de Florianópolis, aceitou uma denúncia do Ministério Público Federal contra 13 pessoas acusadas de crimes como peculato, concussão (exigência de vantagem indevida por funcionário público) e organização criminosa.

Segundo a Procuradoria, houve irregularidades na gestão de recursos relacionados ao ensino à distância repassados por órgão do governo e pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para implementação de atividades como o pagamento de bolsas a profissionais.

A denúncia sobre o caso afirma que, do total de 60 professores do Departamento de Ciências da Administração, seis receberam o equivalente a 43% do montante pago via fundações de apoio da UFSC e via Capes -a título de bolsas a distância- entre 2008 e 2016. Houve quebras de sigilo e buscas e apreensões na investigação.

A ação está na fase dos depoimentos de testemunhas e ainda não tem sentença. Os acusados negam terem cometido os supostos crimes que lhes são apontados.

Em paralelo, o TCU (Tribunal de Contas da União) também abriu apurações sobre o caso. No entanto, uma delas foi arquivada neste ano, o que motivou Dino a pedir à PF uma apuração administrativa sobre “possíveis abusos e irregularidades na conduta de agentes públicos federais” no caso.

Essa apuração foi aberta e tem analisado os autos da ação criminal da Ouvidos Moucos.

Em ofício apresentado na última semana, o delegado Renato Sayão Dias pediu acesso aos acordos de não persecução penal firmados sobre o caso, para fundamentar a investigação de “possível ocorrência, quando da Operação Ouvidos Moucos, de excessos, desvio de finalidade, arbitrariedades ou inobservância de requisitos indispensáveis à adequada e justa condução das investigações policiais”.

Como pano de fundo, a apuração sobre eventuais erros cometidos por agentes públicos na Ouvidos Moucos tem relação com a revisão que o governo do presidente Lula (PT) tem feito em relação a ações oriundas da Lava Jato.

A delegada que atuou na operação no início do caso foi Érika Marena, que também foi delegada da Lava Jato.

Após a fala de Dino defendendo a apuração sobre a atuação na Ouvidos Moucos, a ADPF (Associação Nacional dos Delegados da PF) e a Fenadepol (Federação Nacional dos Delegados da PF) divulgaram uma nota em desagravo a Marena -sem citá-la nominalmente- afirmando que a autonomia funcional dos delegados “é premissa basilar e fundamental para o bom desempenho de suas atribuições”.

“É inaceitável o estabelecimento de quaisquer rótulos sobre os profissionais atuantes na polícia judiciária, independentemente da ocupação de funções e cargos públicos em governos anteriores ou da coordenação de grandes operações policiais”, diz a nota.

Filho de reitor firmou acordo

Uma das 13 pessoas que se tornaram rés na Ouvidos Moucos, sob acusação de peculato, foi o filho de Cancellier, Mikhail Cancellier.

Isso porque a PF se baseou em transações financeiras que aconteceram entre agosto e outubro de 2013 e que totalizaram R$ 7.000 para incluir Mikhail na ação.

O professor da UFSC Gilberto Moritz, amigo de Luiz Carlos Cancellier, fez as transferências para a conta de Mikhail naqueles meses. Cancellier não era reitor na ocasião, mas coordenava alguns projetos acadêmicos e Moritz era bolsista em pelo menos um deles.

O procurador André Bertuol não apresentou novas provas que incriminassem Mikhail, mas chegou à mesma conclusão do delegado, a de que ele teria se beneficiado de um suposto esquema.

Em depoimento à época, Mikhail disse não saber os motivos da transferência e afirmou não ter relação acadêmica ou comercial com Moritz. Na época das transações financeiras, ele tinha 25 anos e era ajudado financeiramente pelo pai.

Em 2019, em entrevista à Folha, Mikhail rebateu as acusações e disse esperar que a denúncia fosse rejeitada. “Bom, eu sou inocente, né? Mas é um julgamento, todo processo, que eventualmente tem uma metodologia que é diferente. Então é difícil não sentir medo”, declarou.

Dois anos depois, ele aceitou fazer um acordo com o Ministério Público para deixar de ser réu no processo -o chamado ANPP (Acordo de Não Persecução Penal).

Ele se comprometeu a transferir à união o valor de R$ 7.000 que recebeu, corrigidos, e a entregar por dois anos cestas básicas no valor de R$ 480 a instituições de caridade.

Outras duas pessoas acusadas também firmaram esses acordos. A solicitação feita na última semana pela PF é para ter acesso ao teor desses três termos.

O professor Moritz também foi acusado na ação da Ouvidos Moucos pelas supostas práticas de peculato, concussão e participação em organização criminosa. Ele ainda é réu na ação.

Procurado, o advogado de Moritz, Adriano Zanotto, afirmou que seu cliente “não era ordenador de pagamento de bolsas”.

“Todas as atividades que desenvolveu atendiam às determinações da Capes e normas e resoluções da UFSC, que as expedia dentro das suas autonomias”, diz Zanotto.

“Mesmo com escassez de recursos, juntamente com abnegados outros professores da UFSC, realizaram os acusados importantíssimo programa de ensino à distância que atendeu a milhares de alunos e ao interesse público. Na instrução processual, aliás, até mesmo as testemunhas de acusação, têm confirmado a correção de todos os atos administrativos e inclusive apontado abusos ocorridos durante a elaboração do inquérito policial”.

JOSÉ MARQUES / Folhapress

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