Falhas na produção de provas prejudicam apuração de mortes por policiais, dizem especialistas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, têm chamado de narrativa as denúncias de abusos na ação mais letal das forças de segurança de São Paulo desde o Carandiru, em 1992.

Com previsão de durar um mês, a Operação Escudo, desencadeada após a morte do soldado da Rota Patrick Reis, deixou ao menos 16 mortos na Baixada Santista. Até o momento, apenas imagens de sete câmeras foram acessadas pelo Ministério Público, das 10 ocorrências em que havia câmeras.

A SSP afirma, em nota, que as investigações estão em andamento por meio da Divisão Especializada de Investigações Criminais de Santos, com apoio do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Na Polícia Militar, são apurados por um Inquérito Policial Militar (IPM).

Além de riscos nas declarações dos comandantes das forças de segurança antes da conclusão de inquéritos, especialistas ouvidos pela reportagem que os principais problemas na apuração de mortes que têm policiais como suspeitos costumam ser as falhas na produção de provas.

Ainda segundo especialistas, nesses casos predominam o depoimento dos agentes envolvidos e uma atuação tardia do Ministério Público —responsável pelo controle da atividade policial— no processo.

Em São Paulo, protocolo da Secretaria da Segurança Pública (SSP) de janeiro de 2013 determina que a primeira etapa é a preservação do local pelos policiais envolvidos, que não podem prestar socorro.

Eles devem acionar o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e comunicar os centros de operações da Polícia Militar ou da Polícia Civil. Esta última envia peritos ao local, responsável pela coleta inicial de evidências, como fotos dos corpos e cápsulas de munição.

No depoimento dos agentes envolvidos na morte, o delegado pode pedir a prisão em flagrante deles se considerar que há indícios de ilegalidade ou abuso na ação. Caso contrário, pode liberá-los, mas deve seguir com o inquérito policial, com oitivas de outras testemunhas e a produção de provas como resíduos deixados pelo uso de arma de fogo e confrontos balísticos.

A falha nessa etapa, segundo a Defensoria Pública de São Paulo, é o principal argumento nas ações contra o Estado por ações consideradas ilegais.

O delegado também deve solicitar as câmeras usadas por policiais, se houver. “Se conseguimos ver a ação, a câmera é o principal elemento para que os policiais se resguardem”, diz o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e integrante da Rede de Observatórios de Segurança, Bruno Paes Manso.

Das 16 ocorrências com mortes confirmadas na Operação Escudo, em 10 as unidades policiais tinham câmeras corporais, e o conteúdo de sete casos, menos da metade, foi acessado pelo Ministério Público até o momento. Segundo a SSP, em três das ocorrências pode ter havido problemas, mas não há detalhes.

Todas as armas envolvidas devem ser apreendidas para perícia. A resolução determina que não sejam usadas as expressões auto de resistência ou resistência seguida de morte, ou parecidas.

Para Amanda Pimentel, do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV, ainda há problemas nos registros. Para ela, a frequência da expressão “repelir uma injusta agressão” lembra os antigos autos de resistência. “É uma tentativa de afastar a possível responsabilização sobre o ocorrido.”

A pesquisadora participou de um levantamento da FGV que analisou oito casos no país, entre 1992 e 2020, que deixaram 140 mortes. Agentes foram responsabilizados pelos homicídios em dois deles, com nove condenações no total.

Após a conclusão do inquérito, a Polícia Civil envia o material e o relatório e avaliação sobre legalidade na ação ao Ministério Público, que pode pedir mais provas e escolher denunciar ou pedir arquivamento do caso.

Se optar por fazer a denúncia, a Promotoria a oferece a um Tribunal do Júri, e um juiz vai analisar o caso em uma audiência, além de ouvir as partes. O magistrado decide se arquiva ou leva o caso a júri popular. É nesta etapa de avaliação que está o processo contra 13 policiais militares pela ação que deixou nove mortos em um baile funk de Paraisópolis, na zona sul da capital, em 2019.

Em todas as etapas, do relatório do inquérito à análise pelo júri popular, pode ser considerado que os agentes estão resguardados pelo excludente de ilicitude, o que motiva o arquivamento ou a absolvição dos envolvidos. Segundo o Código Penal, o agente não comete crime quando mata “em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, analisou, em estudo publicado em 2021, casos de 2016 de São Paulo e do Rio de Janeiro, e estimou que a Promotoria pede arquivamento de nove em cada dez casos de mortes causadas por policiais.

Procurado, o Ministério Público paulista afirmou, em nota, que designou promotores do Tribunal do Júri e do Grupo de Atuação Especial de Segurança Pública (Gaesp) para o caso da Baixada Santista. “O número de policiais denunciados e condenados pelo MPSP refuta cabalmente qualquer conclusão equivocada sobre um suposto respaldo institucional a autores de condutas ilícitas.” O órgão não informa números.

Para Luís Felipe Zilli, pesquisador da Fundação João Pinheiro e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os discursos de Tarcísio e Derrite são problemáticos.

“Primeiro, ratifica o discurso perverso de ‘bandido bom é bandido morto’.” Ele aponta que as declarações também são sinais para as cadeias de comando e as tropas. “O recado pode provocar uma escalada de violência.”

Ainda, há um efeito político. “Projeta uma atuação negligente da investigação, é problemático para a lisura do processo. Acho curioso que se fale em resultados preliminares de laudo de IML [Instituto Médico-Legal] porque na primeira fala do governador [na segunda, 31 de julho] nem se sabia do número de vítimas totais.”

Em todas as manifestações, segundo o governo paulista, Tarcísio tem reiterado que as ocorrências de confronto com morte estão sendo minuciosamente investigadas. “É temerário que pessoas ouvidas pela reportagem se atenham a interpretações enviesadas e descontextualizadas para justificar ilações que não se sustentam em fatos”, diz a nota.

“É muito grave um policial ter sido morto enquanto fazia ronda, mas, dentro do Estado de Direito, está a prisão de suspeitos como principal resposta”, afirma Paes Manso. “Sabemos que, no Rio de Janeiro, discurso da guerra e fragilização do controle das polícias fazem parte e são sementes da formação da milícia.”

LUCAS LACERDA / Folhapress

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