Morre Aderbal Freire-Filho, um dos grandes diretores do teatro brasileiro, aos 82

CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – Morreu nesta quarta-feira (9) o diretor teatral Aderbal Freire-Filho, aos 82 anos, um dos grandes encenadores brasileiros do século 20, devolveu à palavra a força da cena. Em uma centena de produções para o teatro, foi mestre do encontro do literário com a teatralidade.

A informação foi confirmada por sua assessoria de imprensa. Ele estava internado devido a um acidente vascular cerebral, sofrido em 2020. Desde então, a atriz Marieta Severo, sua mulher, montou uma UTI em casa para cuidar do artista.

Articulado e espirituoso, participou ativamente da vida cultural do país. Contador de histórias, questionador, falava como quem conversava com os filósofos, dramaturgos e encenadores que o precederam.

Em uma edição do “antiprograma” Arte do Artista, que apresentou na TV Brasil, deitou-se muito à vontade com seu notebook no chão do cenário feito de pedaços de peças do seu repertório, para anunciar o papo com editores de uma revista impressa de crítica e estética. Ali, víamos enlaçar o sério e o humor, a erudição e o chão do palco.

Nascido em Fortaleza, em 1941, filho do dono de uma livraria que faliu, tornou-se inventor nos palcos cariocas depois que preferiu o teatro à advocacia. Já atuava desde os 13 anos quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1970.

O aperto para pagar o aluguel o impeliu à direção. Trabalhava então como ator, com os diretores Nelson Xavier e Cecil Thiré, em “O Segredo do Velho Mundo”, quando escreveu e montou uma adaptação de “Flicts”, do Ziraldo, para ser apresentada nos horários livres do teatro que ocupavam na Lagoa.

O mesmo artista que criou um dos “site-specific” mais emblemáticos da historiografia teatral brasileira, “A Morte de Danton”, de 1977, também pôs em cena obras literárias na íntegra, os chamados romance-em-cena, como “O que Diz Molero”, de 2004, de Dinis Machado.

Tantas vias criativas atestam a inquietação de um experimentador que cultivou o prazer de trabalhar sobre a escrita de outros autores com um sentido próprio de fidelidade. Buscava a compreensão da ideia de teatro daquele texto para melhor expressá-la cenicamente.

Dizia preferir montar os dramaturgos vivos: “Fico na porta do teatro perguntando se Shakespeare chegou”, brincava.

Devoto debochado de Brecht, cogitava que, se o alemão fosse seu contemporâneo, teria se interessado pelas combinaçōes entre o dramático e o épico, tal como ele. Praticou, portanto, uma fidelidade desejante, em mutação.

Nos anos 1970 e 1980, Aderbal se dedicou a encenar uma geração de dramaturgos brasileiros como Flavio Marcio, Aldomar Conrado, Vianinha e Leilah Assumpção.

Ainda assinava Aderbal Júnior quando dirigiu “Apareceu a Margarida”, de 1973, primeira obra de Roberto Atahyde, uma representação do terror do autoritarismo na educação, em meio à intensa repressão política. Teve a temporada interrompida pela censura.

Embora o sucesso tenha sido creditado à estrela Marília Pêra, ali Aderbal já dava direção ao seu teatro: arranjar palavras, luz, sons e espaço como matéria bruta para compor viagens imaginativas, críticas à violência do exercício de poder.

Com esse espírito crítico, desceu os dez metros da cratera de um metrô do Rio, ainda em construção, para fazer dramaturgia com o espaço em “A Morte de Danton”, de Buchner. Uma metáfora concreta das forças revolucionárias subterrâneas no enfrentamento da ditadura.

Para Aderbal, a liberdade não excluía a precisão. Na direção de atores e atrizes, julgava necessário que cada artista desenvolvesse sua compreensão do espetáculo, como coautor, para que na atuação não escapasse uma ideia equivocada da cena.

Não via vantagens no “espontaneísmo”. Marcava a movimentação como um coreógrafo, por mais que essa prática não fosse bem vista no teatro contemporâneo.

Quando Julia, a fictícia esposa do revolucionário francês em “A Morte de Danton”, envenena-se, sai de cena subindo à superfície do metrô. Para Aderbal, esse era um exemplo de solução à qual dificilmente chegaria pela improvisação, ou somente após uma série de sensos comuns como deixar-se cair ou deitar-se.

O que lhe interessava era a expressividade.

Por “Mão na Luva”, de 1984, com Marco Nanini e Juliana Carneiro da Cunha, conquistou dois prêmios Mambembes. Vivia um período de intensa troca com a América Latina, principalmente com o Uruguai, onde levou o prêmio de melhor espetáculo estrangeiro de 1985.

Em 1990, fundou o Centro de Demolição e de Construção do Espetáculo, em uma ocupação-recuperação do Teatro Glaucio Gil, materializando a ideia de que no teatro “não há regras, as formas são demolidas e reconstruídas”.

Lá estreou “A Mulher Carioca aos 22 Anos”, romance de João de Minas que Aderbal achara anos antes em um sebo e comparara a Nelson Rodrigues. As 210 páginas do livro tornaram-se quatro horas de um romance-em-cena que investia radicalmente na narratividade e renderia ao diretor o Prêmio Shell.

Nos anos seguintes conduziu o público pelas salas do Palácio do Catete para contar a trajetória de Getúlio Vargas, em “O Tiro que Mudou a História”, de 1991, e espalhou cenas de Tiradentes, em “Inconfidência no Rio”, de 1992, por museus, ruas e porões, convidando grupos de espectadores a realizarem o percurso em ônibus fretados.

Em 1994, Aderbal passa a dirigir o Teatro Carlos Gomes, onde montou “A Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues.

Com tantos nomes de vulto em sua trajetória, é impossível sintetizar todo o frisson que suas produções causaram -como o “Hamlet” despojado de Wagner Moura, em 2008, que irritou parte da crítica e foi dito “o Hamlet de uma geração” por outra.

Nos anos 2000, também ganharam força seus romances-em-cena, como “Púcaro Búlgaro”, de 2006, de Campos de Carvalho, e “Moby Dick”, de 2009, de Herman Melville. O monstruoso não era construído no palco, onde quatro atores narravam, mas provocado na imaginação do espectador.

Em junho de 2005, dirigiu “Sonata de Outono”, de Ingmar Bergman, o primeiro espetáculo do teatro Poeira, inaugurado naquele ano por Andrea Beletrão e Marieta Severo, e que as atrizes mantém até hoje.

Nesta época, entrou em um imbróglio jurídico ao lado dos cartunistas Ziraldo e Millôr Fernandes e o dramaturgo Alcione Araújo, quando foram nomeados conselheiros da Sociedade Brasileira de Autores, a Sbat, para reerguer a instituição.

Na ocasião, os quatro tiveram suas contas bancárias bloqueadas para o pagamento das milionárias dívidas trabalhistas da entidade, responsável pela arrecadação de direitos autorais de dramaturgos. Freire-Filho chegou a perder mais de R$ 100 mil no processo, mas ainda em 2018 seguia atuando para ajudar a quitar as dívidas da entidade.

Aderbal já se definiu como coreógrafo de palavras, signos e ações. Foi um experimentador das matérias do mundo, o que talvez seja uma boa definição para um encenador de teatro.

A bonita parceria com Marieta Severo chegou a peças como “As Centenárias”, de Newton Moreno, em 2009, e a tragédia libanesa “Incêndios”, de 2013. Mantiveram uma relação de duas décadas, vivendo em residências separadas até que Aderbal sofreu o AVC.

Em um de seus trabalhos derradeiros, dirigiu Lucélia Santos e Beatriz Azevedo no “Cabaré Transpoético”, de 2019, inspirado pelo Cabaré Voltaire suíço, onde vanguardistas refugiavam-se em meio à Primeira Guerra Mundial.

Na última década, acirrou a crítica social em sua fala e escrita, e lamentou a desconexão da população com uma arte que, nos anos de chumbo, fizera-se porta-voz da luta política.

A quem lhe perguntasse sobre a importância do teatro para a sociedade, respondia: nenhuma. A quem se preocupasse com o futuro dessa arte, contudo, professava que chegaria o dia em que tudo seria feito por aplicativo -menos o teatro.

Com Aderbal, pudemos imaginar vivamente.

LUCIANA ROMAGNOLLI / Folhapress

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