SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sob o sol do verão turco, em uma ilha próxima a Istambul, acompanhado de um gato escuro de estimação, Orhan Pamuk concede entrevistas entre risos para promover o livro “A Mulher Ruiva”, publicado originalmente em 2016, mas traduzido agora no Brasil.
É difícil imaginar que o Nobel de Literatura, que vira a câmera durante a entrevista para exibir a vista marítima de sua casa de veraneio, seja a mesma pessoa que empilha acusações de antipatriotismo desde 2005, quando teve seus livros queimados em praça pública. O presidente recém-reeleito Recep Tayyip Erdogan já o chamou de terrorista.
“O nacionalismo é algo muito ruim. Hoje só serve ao governo, é racista, ignora as minorias, é ligado ao islamismo político. Antes, no século 20, o nacionalismo tinha a legitimidade de ser anti-imperialista. Mas é sempre usado para perseguir seus críticos. É contraditório porque a Turquia moderna é feita de nacionalismo”, diz Pamuk.
O escritor se refere à transformação do país em República depois da queda do Império Otomano ao fim da Primeira Guerra Mundial, um movimento secular liderado por Mustafa Kemal, conhecido como “Ataturk”, ou pai dos turcos, que celebra seu centenário em outubro deste ano.
Ataturk substituiu o alfabeto árabe pelo turco, forçou a inclusão social de mulheres, fechou as madrassas (escolas muçulmanas) e substituiu a sharia (a lei muçulmana) por códigos penais de inspiração europeia. Apesar dos esforços pela secularização e ocidentalização, era um movimento longe de ser submisso à Europa. O líder entrou em disputa com o Reino Unido por territórios na região que hoje compreende Mossul, no Iraque.
“A Turquia moderna é essencialmente feita do nacionalismo e secularismo”, diz Pamuk. “Mas eles [os nacionalistas pró-Erdogan] ignoram isso.”
É nesse tipo de complexidade de relação entre Oriente e Ocidente que Pamuk forja sua literatura, consagrada por traduzir para o mundo as tensões que constituem o espírito da Turquia. “A Mulher Ruiva”, que se tornou popular no país por ser mais curto que outros de seus romances, segundo ele, não escapa dessa premissa.
O livro está prensado entre as mitologias do Ocidente, ao beber da fonte grega com o mito de Édipo -onde o filho, por engano, mata o pai-, e do Ocidente, ao buscar o mito persa de Shahnameh -em que o pai mata o filho.
São as relações de paternidade, sejam elas literais ou figurativas, que guiam o “A Mulher Ruiva”.
“Eu copiei e colei esses mitos e tentei abertamente fazer uma terceira história de maneira pós-moderna”, afirma Pamuk. “Se funciona ou não, os leitores dirão. Mas é meu método.”
Prensada geograficamente, afinal, a Turquia carrega uma sociedade indecisa sobre sua multiculturalidade -e sobre como agir com o autoritarismo personificado em figuras paternas.
Pamuk diz se identificar mais com o protagonista, Cem. A história parte de uma narrativa de abandono dele por um pai envolvido com a militância de esquerda -o patriarca chega a ser sequestrado pela polícia e afastado da família em meados dos anos 1980, mas se distancia do filho por conta própria depois de solto.
O jovem, atrás de um reforço nas finanças, se torna auxiliar do cavador de poços Mahmut, em quem encontra uma figura paterna -com o amor e a dor que a função reserva.
Com o novo ofício, Cem passa a habitar uma cidade imaginária próxima de Istambul, uma base militar, onde ajuda a cavar um poço para uma fábrica. A chegada de uma misteriosa mulher ruiva, integrante de uma trupe teatral, sacode a relação do jovem Cem com seu pai postiço.
O romance tem tom de fábula e funciona como uma alegoria e comentário político sobre o país de Pamuk. Cem, nesse sentido, representa a Turquia secular, das grandes cidades como Istambul. “Ele tem atitudes libertárias e humanistas”, avalia o autor.
Por outro lado, há personagens que encarnam o autoritarismo nacionalista, caso de Serhat. O escritor, contudo, quer evitar moralismos e maniqueísmos. Para escrever seus personagens, ele mergulha em pesquisa extensa, que engloba tanto a parte histórica e leitura aprofundada de jornais de extrema direita das franjas de Istambul, quanto a imaginação e criatividade.
Mesmo envolto em alegorias, o autor é direto sobre seu objetivo politicamente crítico com o livro e coloca na boca do protagonista questionamentos sobre como todos querem um pai para guiá-los em um mundo onde tomar decisões é difícil.
No caso de “A Mulher Ruiva”, Pamuk conta que foi da ilha da sua casa de veraneio que ele tirou inspiração. Na virada do milênio, não havia encanamento por ali e os cavadores de poço eram figuras necessárias para construir novas propriedades.
“Quanto mais um leitor se confunde se eu sou fascista ou se estou apenas tentando compreender um personagem, mais belo se torna um romance”, afirma. “A arte da ficção reside no poder de identificação com pessoas que não são como nós.”
Os excessos, porém, afastam Pamuk. “Política irritadiça pode funcionar em uma entrevista, mas em um texto será consumida muito rápido”, diz. “Tento evitar excesso de política em meus livros. É um livro político, mas poderia ser antropológico.”
Apesar do caráter politizado de seus romances, Pamuk não vê na literatura uma função de combate. “É importante. Existem deveres éticos e morais claros, mas não vamos exagerar”, diz.
“Quando Putin está fazendo loucuras na Guerra na Ucrânia, quando Erdogan está fazendo loucuras aqui na Turquia, eu não posso combatê-los com meus livros. O que acontece é que eles me colocam sob julgamento. Mas Erdogan não vai renunciar por causa dos meus livros. Ele não vai nem sequer perder votos por me colocar em um tribunal.”
A MULHER RUIVA
Preço R$ 74,90 (280 págs.); ebook R$ 39,90
Autoria Orhan Pamuk
Editora Companhia das Letras
Tradução Luciano Vieira Machado
BÁRBARA BLUM / Folhapress