O impacto do candomblé na religiosidade dos brasileiros de origem africana por vezes dá a impressão de que o culto aos orixás foi a única fé da África a se espalhar pelo país. “Sacerdotisas Voduns e Rainhas do Rosário”, livro organizado pelos historiadores Aldair Rodrigues e Moacir Maia, mostra que o candomblé é um exemplo de um fenômeno histórico bem mais amplo do Brasil colonial.
Ao longo de séculos de tráfico negreiro, uma grande variedade de crenças tradicionais africanas buscou maneiras de sobreviver e prosperar diante do impacto da escravização, do predomínio do catolicismo e do peso do Estado português. A documentação habilmente explorada por Rodrigues e Maia ajuda a reconstruir uma dessas histórias: a dos cultos conduzidos por mulheres originárias da África Ocidental no território de Minas Gerais, em localidades como Paracatu e Sabará, em meados do século 18.
Trazidas da Costa da Mina (nomenclatura colonial imprecisa, mas que abrangia principalmente o território costeiro de Gana, Togo, Benim e Nigéria), as chamadas “pretas mina” eram relativamente numerosas, apesar do predomínio masculino na população escravizada.
O subgrupo passou a desempenhar um papel relevante para a economia mineira ao atuar no mercado ambulante de alimentos. Isso permitiu que ao menos algumas delas acumulassem recursos e, com o passar do tempo, comprassem sua liberdade, levando ao surgimento de uma população de africanas libertas em Minas Gerais.
Esse fenômeno era relativamente comum no Brasil nos contextos em que havia “escravos de ganho” cativos que trabalhavam longe de seus senhores na maior parte do tempo, prestando serviços ou comerciando, e tinham permissão para ficar com uma pequena parte dos lucros que obtinham.
As “pretas mina” citadas na documentação que o livro apresenta às vezes conseguiam ter residência própria e transformavam suas casas em centros do culto vodum da África Ocidental, caracterizado por uma complexa estrutura ritualística na qual se honravam divindades e ancestrais. Foi isso que colocou os africanos Teresa Rodrigues e Manoel Mina, por exemplo, na mira de João Soares Brandão, comissário da Inquisição, em 1759.
Segundo ele, pedaços de pau pintados e manipulados pelos dois seriam “figuras de certas cobras, que alguns dos gentios daquela Costa da Mina adoram por seus deuses”.
Segundo a dupla de historiadores, essa provavelmente é uma referência ao vodum Dangbé, divindade associada à serpente píton (Python regius) que era associada à fertilidade agrícola, prosperidade e vitórias militares.
Tanto sacerdotes quanto sacerdotisas conduziam cerimônias de seu culto, e, em determinados contextos, o status das mulheres religiosas podia ser mais elevado do que o dos homens. As guerras entre reinos africanos que alimentavam o tráfico de escravizados durante o século 18 provavelmente foram responsáveis pelo desembarque de milhares de devotos de Dangbé no Brasil nessa época.
Outra possibilidade forte, de acordo com os autores do estudo, é que escravizados e libertos de Minas Gerais citados nas denúncias à Inquisição estivessem confeccionando os chamados “bo” e “botchio”, termos usados para designar objetos (em geral de madeira) com propriedades mágico-religiosas.
O paralelo com o fenômeno mais conhecido do candomblé está presente ainda na segunda parte do título do livro: o fato de que, por vezes, as mesmas “pretas mina” denunciadas por sua participação em cultos não cristãos tinham posição de destaque em irmandades religiosas católicas.
Essas irmandades reuniam pessoas de diferentes camadas sociais para financiar festas religiosas, missas e funerais de seus membros, por exemplo. Era nesse contexto que uma sacerdotisa podia ser escolhida como “rainha do Rosário” nesses grupos, por exemplo. “A posição [das africanas] na Igreja Católica remontava a hierarquias mediadas pelo culto vodum”, escrevem os historiadores.
E a mistura de referências se fazia presente também nos rituais vindos da Costa da Mina. Um depoimento diz, por exemplo, que a deus cultuado pelos africanos “já vinha batizado por Nossa Senhora do Rosário e santo Antônio” ou que “estivera sete anos de joelhos diante de Nossa Senhora do Rosário para lhe dar licença para vir a esta terra”.
Para leitores não especializados, é preciso alguma paciência para se acostumar com a sintaxe (e, ocasionalmente, com o vocabulário) do século 18 nos documentos originais da Inquisição reproduzidos na porção inicial do livro. O esforço, porém, vale a pena por abrir uma janela para um período e um embate de visões de mundo sem os quais não se pode compreender a identidade brasileira.
SACERDOTISAS VODUNS E RAINHAS DO ROSÁRIO: MULHERES AFRICANAS E INQUISIÇÃO EM MINAS GERAIS (SÉCULO 18)
Avaliação Bom
Preço R$ 59 (192 págs.)
Autoria Aldair Rodrigues e Moacir Maia (org.)
Editora Chão
REINALDO JOSÉ LOPES