RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O sábado no festival Doce Maravilha, na Marina da Glória, começou com a ventania que soprou sobre o Rio de Janeiro no início da tarde e terminou com o terremoto promovido pelo encontro de Gilberto Gil e BaianaSystem. Realizado em 2019 em Salvador e registrado em disco, o projeto teve agora um esperado bis, explosivo como a estreia.
Gil e BaianaSystem são mais do que artistas com repertórios potentes e musicalidade destacada, que exploram muitas vezes matrizes rítmicas em comum, como o reggae e o ijexá. Isso já justificaria a força do show. Mas há mais em jogo.
Gil e Baiana encarnam –e materializam no show que apresentaram na Marina– o encontro de duas (ou mil) Bahias, diferentes no tempo e no espaço. E Bahia entendida da forma ampla –como chão, sim, mas como maneira de olhar o mundo.
A junção, portanto, traz um testemunho de toda uma história de afirmação negra, de opressão, de sabedorias da rua e do sagrado, de gingas de corpo, de formas de expressar o amor, o desejo, o ódio. “I’m willing and able”, como diz a letra de “Is this Love?” –em tradução livre, “eu quero e sou capaz”.
Esse legado atravessa o repertório. Seja o de Gil, turbinado pela pressão do Baiana, seja o do Baiana, abençoado pela presença de Gil. “Lucro” ecoa “Nos Barracos da Cidade”. “A novidade” esbarra em “Capim guiné”. “Sulamericano” conversa com “Punk da Periferia”. Tudo sob a nuvem onipresente de “Emoriô” –homenagem a João Donato, parceiro de Gil na canção, lembrada em pelo menos mais dois shows da noite.
“Quero ver os corpos deslizando nesse vento bonito que rolou hoje”, disse Russo Passapusso a certa altura, lembrando a ventania de mais cedo. Já não ventava mais. Mas a evocação da força da natureza para falar do que acontecia no palco e na plateia fez todo o sentido.
Os ventos fortes do início da tarde causaram estragos na cenografia e jogaram areia sobre um dos palcos, o que provocou um pequeno atraso na programação para que fosse feita a limpeza. O atraso foi minimizado com a troca de horário do show do Los Sebozos Postizos, projeto de músicos da Nação Zumbi tocando Jorge Ben Jor. Eles abriram o sábado às 16h35. Maria Gadú, originalmente programada como primeira atração, começou sua apresentação às 17h20. Gil e BaianaSystem encerraram a noite pouco antes de 1h.
A dupla composta pela ministra da Cultura Margareth Menezes e Luedji Luna, atração anterior a eles, abriu as portas da Bahia. Os shows instauraram o clima de Salvador em canções como “Faraó”, “Cordeiro de Nanã” e “É d’Oxum”, em bela versão soul de Luedji. As duas alternaram duetos e apresentações isoladas –nesses momentos, cada uma era acompanhada por sua banda.
Logo antes, Emicida sustentou com o vigor de costume a positividade combativa de suas canções, como “Quem Tem um Amigo Tem Tudo” e “Baiana”, outra referência ao estado evocado no fim da noite. No caminho, fez citações a mestres como Jackson do Pandeiro. Maria Rita emocionou em sua participação, especialmente ao lembrar “O Bêbado e a Equilibrista”.
Anavitória e Samuel Rosa protagonizaram o primeiro encontro da noite. O ex-vocalista do Skank entrou no show da dupla para lembrar sucessos como “Vou Deixar”, “Dois Rios” e “Eu Ainda Gosto Dela”, estabelecendo um diálogo entre duas gerações do cancioneiro pop brasileiro.
A costura do encontro de Adriana Calcanhotto e Rodrigo Amarante, porém, teve outro nível de refinamento. Um tanto, sim, pela forma como a música –e o olhar sobre a música– de ambos é naturalmente próximo. Mas, sobretudo, pelo cuidado com que foi pensada a entrada de Amarante dentro da estrutura do show da turnê de “Errante”, álbum de Adriana lançado este ano.
Os momentos em que Amarante aparece no palco sem Adriana parecem não um encaixe de um convidado, mas efetivamente parte de um roteiro, uma narrativa. Como no início do show, quando ele canta “Evaporar”, de sua banda Little Joy, e “Tuyo”, que fez para a trilha sonora de “Narcos”. As duas servem de preparação para o encontro com Adriana na etérea “Lovely”, canção do álbum “Errante” na qual ele participa.
O mais notável do show, porém, é a maneira como a banda de Adriana recria não só as canções do álbum novo como seus sucessos, sempre de forma energética e livre. O pulso de baião original de “Esquadros” é escancarado num xote. “Vambora” se revela um samba. “Cariocas” ganha molho de gafieira. Tudo vibrante e inventivo.
LEONARDO LICHOTE / Folhapress