Justiça do Trabalho ignora STF, e ministros veem afronta à Corte

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Justiça do Trabalho dribla a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal). Juízes defendem a carteira assinada, enquanto ministros do Supremo derrubam decisões contra as chamadas terceirização, pejotização e uberização.

Trata-se de contratos além do previsto na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Após o STF reconhecer a terceirização irrestrita, ministros negam vínculo de emprego a profissionais que atuam como pessoas jurídicas —os “PJs”.

Há casos ainda que envolvem médicos, advogados, corretores de imóveis, além de franqueados e motoristas de aplicativo. Para ministros do STF, magistrados do trabalho ignoram precedentes da corte de cumprimento obrigatório.

Sentenças de juízes, desembargadores e integrantes do TST (Tribunal Superior do Trabalho), consideradas ultrapassadas e afrontosas, passaram a ser cassadas. Procurado, o TST não se manifestou.

A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) diz que a jurisprudência não é ignorada, alerta para fraudes e afirma que decisões do STF causam “abalo”.

No dia 1º de agosto, Gilmar Mendes mandou recado: “Ao fim e ao cabo, a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção”.

O ministro cassou o vínculo de emprego entre uma advogada associada e um escritório, o que implicava direitos como férias e 13º salário. A ação corre no TRT-3 (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região), de Minas Gerais.

O Supremo tem recebido reclamações contra sentenças trabalhistas, como a julgada por Gilmar e também pelas Primeira e Segunda Turmas. No recurso, uma das partes se queixa de uma decisão contrária à jurisprudência da corte.

Os casos chegam ao STF de todo o país, sobretudo de estados com os maiores TRTs (Tribunais Regionais do Trabalho), como São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Foram derrubadas também decisões do TST.

Na sentença deste mês, Gilmar reitera posicionamento de que, na sua avaliação, a corte trabalhista “tem colocado sérios entraves a opções políticas chanceladas pelo Executivo e pelo Legislativo”.

Segundo ele, “a insegurança jurídica e o embate institucional entre um tribunal superior e o poder político” levam a “resultados que não contribuem em nada para os avanços econômicos e sociais”.

Antes de Gilmar, em maio, o ministro Luís Roberto Barroso também chamou a atenção para o desrespeito ao STF, em reclamação contra o TST e o TRT-14, que engloba Rondônia e Acre. Mais uma vez, o caso envolve a relação entre uma advogada autônoma e um escritório.

“A decisão reclamada ofendeu o decidido nos paradigmas invocados [jurisprudência] nos quais se reconheceu a licitude de outras formas de organização da produção e de pactuação da força de trabalho”, diz Barroso.

Já uma decisão de Alexandre de Moraes causou rebuliço na área trabalhista, em maio. Ele derrubou o vínculo de emprego entre um motorista de aplicativo e uma plataforma, além de remeter o processo à Justiça comum.

De acordo com o ministro, “verifica-se a posição reiterada da corte [Supremo] no sentido da permissão constitucional de formas alternativas da relação de emprego”.

Ministra e ex-presidente do TST, Maria Cristina Peduzzi afirma que o STF tem captado os impactos do desenvolvimento tecnológico e o surgimento de novos tipos de trabalhadores, que demandam proteção legal além da CLT.

“A dificuldade para estabelecer a natureza jurídica desses novos vínculos e a tradição de se presumir, na Justiça do Trabalho, que é empregado quem trabalha, até prova em contrário, vem gerando vivo debate, inclusive quanto à competência da Justiça do Trabalho”, diz Peduzzi.

Para a ex-presidente do TST, a decisão de Moraes em relação ao caso da uberização “tem justificativa nesse contexto e nessa realidade”.

No STF, porém, há divergências e até mudança de entendimento. Luiz Fux, por exemplo, voltou atrás em um caso sobre pejotização. Edson Fachin e Rosa Weber, por sua vez, defendem, nos casos avaliados por eles, manter as decisões trabalhistas contra a pejotização.

No fim de junho, Fachin foi voto vencido na Segunda Turma durante a análise de uma reclamação contra o vínculo de emprego entre um médico e um hospital de São Paulo.

“Constata-se que a discussão acerca da possibilidade do reconhecimento de vínculo do obreiro diretamente com a empresa contratante no caso da constatação do uso de pessoa jurídica com o fito de mascarar a relação de emprego e, com isso, fraudar a legislação trabalhista, como na hipótese dos autos, não foi analisada no julgamento da ADPF [ação de descumprimento de preceito fundamental] 324 [que reconheceu a terceirização]”, escreve Fachin.

O colegiado derrubou, ao fim, o vínculo de emprego.

Advogado no caso e professor titular aposentado de direito do trabalho da USP, Nelson Mannrich diz que a decisão da Segunda Turma traz segurança jurídica e se alinha a precedentes também da Primeira.

Ele destaca que os ministros citam a tese da ADPF 324, que trata da terceirização, e o tema 725, que, em um recurso extraordinário com repercussão geral —que deve ser seguida em outras ações sobre o assunto—, reconheceu lícita “qualquer forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”.

“Como parte significativa da Justiça do Trabalho insiste em ignorar as mudanças que vêm ocorrendo, coube ao STF reconhecer a existência e legitimidade de diferentes formas de trabalho”, afirma Mannrich.

De acordo com ele, se constatada a fraude trabalhista, a terceirização será considerada nula. No entanto, há a inversão do ônus da prova.

“O que muda é que, no novo paradigma desenhado pelo STF, a presunção se opera em favor da licitude, não mais da fraude”, diz. “A mensagem do STF à Justiça do Trabalho é clara: existe trabalho digno sob outras formas jurídicas.”

ENVIO DE CASOS PARA VARAS COMUNS PREOCUPA ADVOGADOS

A questão da competência da Justiça do Trabalho preocupa advogados e juízes. Desde a reforma do Judiciário, em 2004, a Constituição passou a dizer que cabe a esse ramo da Justiça analisar as relações de trabalho.

Antes, pelo texto de 1988, a competência restringia-se às relações de emprego. Ao longo dos anos, porém, temas reivindicados pela Justiça do Trabalho migraram para a Justiça comum.

Moraes, por exemplo, fez isso no caso do motorista de aplicativo. Porém, a decisão monocrática não é vinculante.

Na ocasião, entidades como a OAB-SP e OAB-DF (Ordem dos Advogados do Brasil – Seccionais de São Paulo e do Distrito Federal) divulgaram notas públicas.

“A decisão monocrática proferida na reclamação constitucional compromete a própria existência da Justiça do Trabalho”, diz o documento assinado pelo presidente da OAB-DF, Délio Lins e Silva Júnior.

Ao lado de mais oito entidades da advocacia, a OAB-SP afirma vir a público para “externar perplexidade”. A decisão, de acordo com signatários, denota “preocupante tentativa de esvaziamento da Justiça do Trabalho”.

Negar o vínculo de emprego, para Ricardo Calcini, professor, advogado e sócio-diretor do Calcini Advogados, não deveria implicar a rejeição ou restrição da competência da Justiça do Trabalho.

Segundo ele, a atual jurisprudência tem levado, no entanto, a um novo olhar sobre o direito do trabalho. “Esse movimento, ao que tudo indica, afastará o clássico enquadramento pelo vínculo empregatício”, afirma Calcini.

Contudo, para o professor, em casos de fraude, deve-se estabelecer a relação de emprego, sendo exceção apenas os casos julgados pelo STF.

De acordo com Calcini, existe hoje um perfil liberal na economia na corte em detrimento da visão da Justiça do Trabalho, considerada mais protetiva. Para ele, há ruídos, e os casos ainda poderão chegar ao plenário do Supremo.

DECISÕES DO SUPREMO CAUSAM ABALO, DIZ PRESIDENTE DE ASSOCIAÇÃO DE JUÍZES

Decisões em série do STF (Supremo Tribunal Federal) contra o reconhecimento de vínculo de emprego põem a Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) em alerta.

“Isso tudo significa um grande abalo na Justiça do Trabalho, que tem sua competência definida pela Constituição e que possui relevante função social”, afirma Luciana Conforti, presidente da entidade.

Em casos como o da decisão de Alexandre de Moraes, que derrubou o vínculo de emprego de motorista de aplicativo e remeteu a ação à Justiça comum, a juíza diz que a reclamação não é o instrumento mais adequado para contestações.

Para ela, a Justiça do Trabalho “não pode ter a competência restringida por situações que absolutamente não dizem respeito a precedentes vinculantes do STF, principalmente por reclamações constitucionais”.

Conforti, em posicionamento enviado via assessoria de imprensa, nega que juízes, desembargadores e ministros do TST (Tribunal Superior do Trabalho) ignorem a jurisprudência do Supremo sobre a terceirização.

“Os magistrados do trabalho decidem em conformidade estrita com os precedentes vinculantes do STF. Em razão disso, não se questiona mais a legalidade da terceirização em atividade-fim”, diz a juíza.

Segundo ela, é legítimo a Justiça do Trabalho declarar a ilegalidade de contratos. “Na decisão do STF sobre a terceirização, foi deixado claro nos fundamentos que casos de fraude continuariam a ser apreciados”, afirma Conforti.

Cabe ainda ao ramo especializado do Judiciário, de acordo com ela, avaliar as relações de trabalho, além das de emprego.

“A principal questão é que, em muitas dessas decisões do STF, o precedente da terceirização tem sido o principal fundamento para afastar a competência da Justiça do Trabalho, o que, em nenhum momento, ficou decidido quando do pronunciamento vinculante de que não há vedação para a terceirização de atividade-fim”, diz a presidente da Anamatra.

Conforti afirma, porém, que o Supremo exerce nesses casos “o seu livre convencimento motivado, com base na sua interpretação da Constituição e das leis do país, do mesmo modo que os tribunais e juízes do trabalho em suas respectivas decisões”.

A juíza destaca ainda as decisões divergentes na corte. Em relação ao posicionamento de Moraes sobre a uberização, ela afirma que “não há um precedente vinculante direto neste caso”.

No entanto, diante dos recados do STF, a presidente da associação de magistrados diz que é necessário se aproximar institucionalmente da corte. A ideia é melhorar a relação com o Supremo.

“Procuraremos o estreitamento de laços com o STF e a abertura do diálogo, a fim de afastar qualquer risco de insegurança jurídica e para a preservação da competência da Justiça do Trabalho e autoridade de suas decisões”, diz Conforti.

AS MODALIDADES DE CONTRATO

Vínculo de emprego: é o tipo de contrato previsto na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), conhecido como carteira assinada, com previsão de férias, 13º salário, FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), entre outros direitos

Terceirização: empregado tem os direitos previstos na CLT, mas presta serviço em uma empresa na condição de funcionário de outra (terceirizada); a regra vale para atividade-meio (limpeza, por exemplo) e atividade-fim (o próprio negócio), o que era proibido

Pejotização: trata-se da contratação de profissional como pessoa jurídica, não física, unipessoal; é chamada no STF de terceirização por pejotização

Uberização: é o fenômeno recente do trabalho por aplicativos de transporte e entrega

WILLIAM CASTANHO / Folhapress

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