Raimunda Alves, 46, volta quase todos os dias às ruínas da casa onde passou mais da metade da vida, no sopé da encosta que desabou. “Hoje mesmo eu chorei, sinto saudade da minha casa”, conta, enxugando as lágrimas, enquanto descansa no descampado com chão de lama e entulho onde seus vizinhos foram soterrados. “Carreguei o material nas costas para construir, mas agora a gente não pode mais morar aqui.”
Provocada pela mais volumosa chuva já registrada no país, a tragédia que matou 65 pessoas no litoral norte de São Paulo completa seis meses neste sábado (19). Foram 64 mortes na cidade de São Sebastião, quase todas na Vila Sahy, comunidade formada por migrantes nordestinos atraídos pela oferta de trabalho nas residências de veranistas, restaurantes e pousadas da região.
No que restou do ponto mais elevado do bairro, parte das famílias cujas casas resistiram, algumas intactas, permanece nos imóveis marcados com avisos de interdição. Alguns já foram reformados.
Carpinteiros, jardineiros, porteiros, cozinheiras e domésticas não aceitam deixar o patrimônio construído ao longo de três décadas para recomeçar a vida nos apartamentos de 40 metros quadrados da CDHU, a companhia estadual de habitação hoje comandada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Aqueles que assinarem o contrato com a companhia pagarão mensalidade de 20% da renda familiar para, a partir de outubro, habitarem o conjunto com 30 prédios em construção a cerca de dois quilômetros, na Baleia Verde, bairro nos fundos da praia da Baleia.
Independentemente do tamanho, padrão ou quantidade de imóveis que tinham, cada uma das mais de 700 famílias identificadas nas áreas atingidas terá direito ao financiamento subsidiado de uma unidade.
Com ar-condicionado e vaga de garagem, algumas residências também haviam sido adaptadas para a hospedagem de turistas. “Quanto valem esses terrenos? Eu tenho uns R$ 500 mil aqui”, estima o zelador Luis Carlos de Novaes, 49, que mostra do portão o terreno de 700 metros quadrados com sete pequenas casas. “Olha a casa do meu vizinho”, diz, apontando para a construção ao lado, com três pavimentos e guarda-sóis na varanda.
Contas de luz e IPTU pagos por anos embasam as alegações de direito de posse, pela qual os moradores pretendem lutar, ainda sem saber ao certo como.
“Dizem que vão demolir, mas é muita conversa, prefiro ficar até quando der”, comenta o encanador Messias da Fé Barbosa, 58. “A casa da gente é um sonho conquistado”, justifica.
Até quem sobreviveu por pouco enfrenta o medo para cuidar do lar. Arrastada pela enxurrada por mais de meio quilômetro naquele 19 de fevereiro, a doméstica Edna da Silva, 41, troca a moradia provisória cedida pelo estado na cidade vizinha Bertioga para, uma ou duas vezes por semana, dormir na antiga residência. “Fico um dia ou dois, para não ficar indo e voltando para o trabalho, que é aqui perto”, explica. “Quando está chovendo eu tenho medo.”
Sirenes de alerta e o sistema de aviso de evacuação por celular ainda não chegaram na Vila Sahy. Estão prometidos pelo governo estadual para o final do ano. A Prefeitura de São Sebastião reforçou que a instalação do sistema ficou a cargo do estado.
Câmeras instaladas pelos vizinhos com imagens compartilhadas pela internet ajudam a vigiar os imóveis de quem não pôde permanecer. É a única nova tecnologia no bairro desde a tragédia, além das ligações clandestinas de energia, pois a luz foi cortada nas vielas mais afetadas pelos deslizamentos.
Nomeado pelo governador para gerenciar a crise no litoral norte, o coronel do Exército André Marcelo Warol Porto Rodrigues disse à reportagem que o estado vai melhorar o diálogo com a população para tentar demonstrar que não é necessário permanecer na área de risco para reivindicar judicialmente, com apoio da Defensoria Pública de São Paulo, indenização pelos imóveis.
Alguns moradores cobram, porém, tratamento semelhante ao dado pelo poder público aos proprietários de imóveis de alto padrão no morro que separa a Barra do Sahy da praia da Baleia, onde também houve deslizamentos e ao menos uma casa inteira escorregou pela encosta, mas não há ameaça de remoção.
“Tanto o governo estadual quanto o municipal estão dando bastante apoio para a gente, isso eu não posso negar”, relatou Gilson Teixeira, 61, morador do morro onde pedreiros trabalhavam nas casas de veranistas na última quarta-feira (17).
O coronel Porto justifica que a equipe da Defesa Civil da Prefeitura de São Sebastião interditou residências de forma preventiva, até que reparos e manutenções fossem executados. “Independentemente dos padrões de moradia, a avaliação é técnica”, disse.
Ele ainda afirma que em algumas semanas terá condições de apresentar para os moradores quais serão exatamente as casas temporariamente interditadas que poderão ser mantidas ou não.
“Talvez em uma ou duas semanas já estaremos em uma tenda, lá na Vila Sahy, para mostrar para eles o que está planejado para acontecer ali”, contou Porto.
Uma das promessas feitas aos moradores é a de um projeto de urbanização da vila, a ser implementado pelo governo estadual com apoio técnico contratado pela organização social Gerando Falcões.
Moradores depositam sobre as obras de urbanização e de contenção de encostas expectativas de salvação para suas casas. A demora, porém, desperta desconfiança. “Pegaram milhões e milhões aqui e cadê esse dinheiro?”, diz o aposentado Geronaldo Silva, 60.
Responsável por uma campanha que arrecadou R$ 22 milhões em nome das vítimas, a entidade afirma ter utilizado parte desse recurso para desenvolver um estudo técnico que servirá de base para a reconstrução da vila, segundo Edu Lyra, fundador e presidente.
A organização também afirma ter iniciado a transferência de R$ 7 milhões diretamente para 2.500 famílias em situação de vulnerabilidade na localidade. Duas parcelas, de R$ 400 e R$ 500, já teriam sido pagas, restando ainda o repasse de R$ 2.000 por grupo familiar.
Cerca de R$ 600 milhões são necessários para realizar todas as obras de restabelecimento de infraestrutura pública nos bairros atingidos, estima a Prefeitura de São Sebastião. Há no momento intervenções em 22 áreas afetadas, segundo o município.
Parte do recurso, diz a gestão do prefeito Felipe Augusto (PSDB), poderá chegar por meio de royalties de petróleo, cujo repasse aguarda liberação da Justiça.
Uma investigação do Ministério Público de São Paulo ainda apura se houve omissão do poder público na resposta à crise humanitária provocada pelos desmoronamentos.
A Prefeitura de São Sebastião afirma seguir prestando assistência à população impactada pela calamidade. O fundo social da cidade recebeu e distribuiu mais de duas toneladas de alimentos para a população, além de lençol, cobertor, travesseiro e fronha, itens de vestuário, de higiene pessoal e eletrodomésticos.
“O acolhimento da população afetada continua com a Vila de Passagem e a oferta de abrigo no conjunto habitacional em Bertioga, em parceria com o governo do Estado, bem como por meio do programa municipal de auxílio aluguel”, informou, em nota.
Já o governo estadual comunicou que a SDHU (Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação) e a CDHU garantiram atendimento emergencial e viabilizam moradias definitivas.
“No primeiro momento, foram entregues 72 unidades na Vila de Passagem no bairro Topolândia e destinadas 300 unidades habitacionais em Bertioga para o atendimento emergencial e provisório. Concomitantemente, a SDUH está construindo 704 unidades habitacionais para atendimento definitivo das famílias afetadas, sendo 518 na Baleia Verde e 186 em Maresias”, comunicou.
O investimento nas ações de infraestrutura, edificação e atendimento emergencial soma R$ 210 milhões, segundo a gestão do governador Tarcísio de Freitas.
CLAYTON CASTELANI E BRUNO SANTOS