CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – O TCE (Tribunal de Contas do Estado) do Paraná contesta a licitação do governo para contratar uma plataforma de controle do fluxo financeiro da futura loteria estadual.
Seis fiscais da 4ª Inspetoria de Controle Externo do órgão apontam o que chamam de falhas graves no edital, como restrição à competitividade e duração contratual incompatível com a natureza do serviço.
O contrato é de 20 anos e pode render mais de R$ 167 milhões ao consórcio no período, na estimativa apresentada no edital, a depender dos ganhos obtidos com os jogos de aposta.
Embora o relatório tenha sido elaborado em março, o mérito do caso ainda não foi analisado pelo conselheiro Maurício Requião, que ainda deve levar o tema para o colegiado do TCE.
O pregão eletrônico, realizado no primeiro semestre, só atraiu um interessado, um consórcio chamado Pay Brokers, cujo quadro de sócios inclui doadores de campanha do governador Ratinho Junior (PSD) e um empresário que, até o final de 2021, ocupava um cargo na Seap (Secretaria de Estado da Administração e Previdência). A pasta hoje abriga a Lottopar, nome comercial da autarquia responsável pela loteria do Paraná.
O governo estadual nega irregularidades no edital e também na contratação do consórcio e afirma que qualquer associação entre a vitória da Pay Brokers e a atuação do empresário na Seap “não passa de dedução”. Também diz que é má-fé vincular “a doação pessoal a um processo licitatório que ocorreu depois do período eleitoral”.
A Lottopar foi criada no final de 2021 na esteira de uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de meados de 2020, que permitiu a exploração de loterias estaduais, até então um serviço exclusivo da União.
No início deste ano, a autarquia abriu uma licitação em busca de um software para processar as transações financeiras entre os apostadores, os sites de apostas e as casas lotéricas.
Em relação à restrição de competitividade, os fiscais dizem que o edital faz exigências como, por exemplo, uma experiência mínima de um ano de operação em sistemas de gestão e monitoramento de lotéricas em mercados regulados, sem considerar que a prestação deste serviço no Brasil ainda está em fase “embrionária”.
“No Paraná, a Administração sequer conseguiu juntar orçamentos de empresas que compreendessem a integralidade dos serviços que se pretende contratar para fins de cotação de preço. Das três cotações feitas, duas não atuam com sistema de gestão”, escrevem os técnicos. A única cotação válida foi justamente da empresa que depois venceu a licitação.
Outro ponto contestado diz respeito à “prova de conceito” aplicada para a empresa previamente classificada em primeiro lugar na habilitação documental. Na visão dos fiscais do TCE, a etapa deveria ser apenas uma “amostra”, mas o edital exigiu uma apresentação do produto “já apto a funcionar com exigências específicas da Lottopar”.
“Da forma como descrito o edital, somente a única (ou as poucas) empresas que já tenham o produto desejado praticamente pronto e acabado para o estado do Paraná poderão participar da licitação”, escrevem os fiscais.
Procurada, a Lottopar afirma que respondeu aos questionamentos do TCE e reforça que o processo de licitação adotou “uma série de medidas para coibir práticas irregulares”.
O consórcio Pay Brokers é capitaneado pelo advogado de Curitiba Edson Antonio Lenzi Filho. Ele é sócio de duas das três empresas que integram o consórcio. Entre as empresas está a Pay Brokers IP Instituição de Pagamento, que tem o ex-servidor da Seap Henrique de Oliveira Moreira entre os sócios.
Moreira ganhou um cargo comissionado na pasta em agosto de 2020. A exoneração ocorreu em novembro de 2021, poucos dias antes da sanção da lei estadual que criou a Lottopar. Já a Pay Brokers IP Instituição de Pagamento foi aberta em fevereiro de 2021, mas Moreira afirma que só começou a trabalhar com o Grupo Pay Brokers em maio de 2022, quando não fazia mais parte do governo.
Ele mantém relação com o governo estadual ao menos desde 2018, quando passou a ser sócio da CS Bioenergia, uma empresa contratada pela Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná). Ele saiu da empresa em maio de 2019. Também tem passagens pelo Tecpar (Instituto de Tecnologia do Paraná) e pela Ferroeste, sociedade de economia mista que tem o governo como maior acionista.
A atuação de Moreira no governo e depois na empresa vencedora da licitação não é objeto de investigação no TCE, que se debruça apenas sobre o edital de licitação.
Tanto Moreira quanto Edson Antonio Lenzi Filho são doadores da última campanha eleitoral de Ratinho Junior ao Governo do Paraná, conforme registros no TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Moreira doou R$ 15 mil. Lenzi Filho doou R$ 115 mil. Além disso, dois familiares dele, sócios da Lenzi Advocacia, também fizeram doações, em um total de R$ 270 mil.
EMPRESA E GOVERNO NEGAM CONFLITO DE INTERESSES
Procurado, o Grupo Pay Brokers afirma que a vitória no pregão eletrônico “respeitou todas as regras e a legislação vigente”.
Sobre Henrique de Oliveira Moreira, o consórcio afirma que ele é economista com vasta experiência no setor financeiro e ingressou no grupo como prestador de serviço, se tornando sócio meses depois.
“O executivo afirma que não houve qualquer conflito de interesses entre suas atividades públicas e privadas. Henrique Moreira não exerceu funções nem teve relações com o Departamento de Licitações da Seap ou com qualquer órgão que foi envolvido com a elaboração dos documentos do pregão eletrônico”, diz a nota.
Sobre as doações à campanha de Ratinho Junior, o grupo diz que “foram feitas de forma regular, no âmbito estrito do exercício do direito individual dos sócios” do consórcio.
A Seap diz que o ex-servidor Henrique de Oliveira Moreira “nunca teve relação com o projeto [da loteria do Paraná], em nenhuma de suas fases”. “No período que atuou na pasta, sua atribuição principal era a de orientação dos núcleos administrativos sobre a gestão de prestadores de serviço, como copa e limpeza”, continua a nota.
Já o governador diz que a prestação de contas da campanha de 2022 foi feita “de maneira totalmente transparente” e “todas as doações estão dentro da legalidade”. “A legislação garante que pessoas físicas façam doações, desde que sejam devidamente declaradas. Trata-se, portanto, de ilação tendenciosa associar doações voluntárias a um processo que visa dar mais transparência ao serviço de loterias”.
CATARINA SCORTECCI / Folhapress