SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em algum momento na história da Terra, um tubarão perdeu um dente, que foi parar numa planície submarina a centenas de metros de profundidade. Ao longo de milhões de anos, minerais se acumularam ao redor dele e deram origem a um tipo de rocha que está no centro de uma disputa global: a mineração do fundo do mar.
A profundidades de 800 a 6.000 metros, estão reservas de cobre, cobalto, níquel, zinco, prata, ouro e terras raras críticos para a produção de diferentes tecnologias, de painéis solares a baterias de carros elétricos.
Enquanto empresas defendem que esses minerais são necessários para a transição para uma economia de baixo carbono, ambientalistas, pesquisadores e comunidades tradicionais dizem que abrir essa nova fronteira exploratória pode ter um impacto irreversível na biodiversidade e no aquecimento do planeta.
No fundo do mar, esses materiais existem em diferentes formações: nódulos polimetálicos (as rochas formadas a partir de, entre outras coisas, dentes de tubarões), sulfetos polimetálicos (depósitos de compostos de enxofre e outros metais que se formam em torno de fontes hidrotermais) e crostas de montanhas submarinas ricas em cobalto.
Embora essas reservas já fossem conhecidas, só recentemente a tecnologia e o interesse comercial avançaram o suficiente para que a mineração seja financeiramente viável. Porém, mesmo com pesquisas sendo realizadas há décadas, ainda se sabe muito pouco sobre as regiões abissais.
UMA DISCUSSÃO GLOBAL
Como os minerais estão principalmente em águas internacionais, a extração depende da decisão de um órgão vinculado à ONU, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês).
O colegiado se reuniu em julho para discutir se a atividade deveria ser autorizada. O movimento foi impulsionado por uma pequena nação do Pacífico, Nauru.
A ilha de 12 mil habitantes acionou, em 2021, uma cláusula que previa que se um código regulatório não fosse aprovado pela ISA em dois anos, seria possível entrar com pedidos de extração dos minérios quaisquer que fossem as regras em vigor.
Com o prazo final se esgotando neste ano, as 168 nações que fazem parte da assembleia da ISA, além de ONGs e instituições de pesquisa, tentaram chegar a um acordo. Ao final de três semanas de debates, a entidade deixou a decisão para o futuro e o tópico vai ser retomado em 2024.
O pedido de Nauru foi motivado por uma subsidiária local da empresa canadense TMC (The Metals Company). Apesar de não ainda ter autorização para mineração do fundo do mar, a companhia afirma em seu site estar desenvolvendo “a maior fonte estimada do mundo de metais necessários para veículos elétricos e energia de baixo carbono”.
“Os países industrializados sabem que, para a transição energética, a demanda por metais raros vai aumentar nos próximos anos”, afirma Juliano Araújo, diretor do Instituto Arayara, ONG brasileira que atua como observadora na ISA.
“Nós estamos falando de trilhões de dólares que estão nessas reservas internacionais. O que se tem é uma nova corrida pelas últimas fronteiras exploratórias do planeta”, resume.
A POSIÇÃO BRASILEIRA
A mineração do fundo do mar também é defendida por nações como China, Noruega, México e Reino Unido. Do outro lado, uma aliança de 21 países pede que seja adotada uma moratória ou uma pausa preventiva nas deliberações até que os impactos da prática sejam melhor conhecidos.
O Brasil se uniu à iniciativa, ao lado de Costa Rica, Chile, França (que quer um banimento total), Espanha e outras nações. A posição brasileira é de que deveria ser adotada uma pausa de ao menos dez anos.
Integrantes do governo brasileiro que acompanharam o tema relataram que a posição foi adotada porque não há condições científicas para garantir que esse tipo de exploração não afetaria o meio ambiente e a biodiversidade.
“Até então, nunca tinha-se falado na possibilidade de uma moratória”, diz o oceanógrafo Enrico Marone, porta-voz da frente de oceanos do Greenpeace Brasil. A ONG considerou positivo o resultado do encontro, uma vez que não foi dado o sinal verde à mineração.
COMO A MINERAÇÃO DO FUNDO DO MAR FUNCIONA
Seja qual for o tipo de formação geológica, para extrair os minérios do fundo do mar são necessárias ao menos duas estruturas: uma submersa, para coletar os materiais, e um navio na superfície, onde eles são recebidos, processados e de onde os rejeitos são jogados de volta no oceano.
No caso dos nódulos polimetálicos principais alvos da atividade, milhares de rochas, do tamanho aproximado de batatas, ficam agrupadas sobre a areia em planícies abissais. A coleta precisa ser feita com veículos, como tratores submarinos.
Essas reservas estão principalmente no leste do Pacífico, entre 4.000 e 6.000 metros de profundidade.
Outro tipo de formação fica próximo aos limites de placas tectônicas e ocorre à profundidade de 1.000 a 4.000 metros. Os depósitos de sulfetos estão em áreas de atividade vulcânica submarina e são criados pela deposição dos minerais que saem de fendas vulcânicas (como gêiseres submarinos).
O terceiro tipo de reserva ocorre entre 800 e 2.500 metros de profundidade, em montanhas submarinas localizadas principalmente no oeste do Pacífico. As crostas dessas formações são ricas em minerais cobiçados, como cobalto.
Nesses dois últimos casos, a exploração envolve quebrar o solo marinho para poder extrair os minérios.
A PREOCUPAÇÃO AMBIENTAL
Como os processos minerários que já acontecem em terra firme, a mineração do fundo do mar também é uma atividade de alto impacto, que envolve perturbação sonora, movimentação de sedimento e produção de grandes volumes de resíduos. Isso tudo em um ambiente único e muito antigo.
O mar profundo (com profundidade de mais de 200 metros) é o maior bioma da Terra. Ele representa 90% do ambiente marinho e desempenha um papel vital na regulação planetária, absorvendo e armazenando grandes quantidades de dióxido de carbono jogados na atmosfera, principalmente pelas atividades humanas.
Além disso, as partes mais profundas dos oceanos têm pouca ocorrência de luz, temperaturas baixas e altíssima pressão. Os seres que conseguem viver nesses ecossistemas são adaptados a condições singulares.
“As espécies de mar profundo são importantes resultados da evolução em um ambiente extremo”, diz Paulo Sumida, diretor do Instituto Oceanográfico da USP (Universidade de São Paulo). “Em ambientes extremos, a natureza produz mecanismos especiais de sobrevivência que podem ser utilizados pelo homem em processos industriais, medicinais.”
Um estudo publicado em maio descreveu mais de 5.000 espécies vivendo no fundo do mar da Zona Clarion-Clipperton, uma área do Pacífico rica em minerais entre o Havaí e o México que é um dos principais alvos dos pedidos de testes para mineração. A maioria dos animais descobertos eram desconhecidos até então.
“É sabido que as plumas de sedimento que serão levantadas em decorrência da mineração podem ser extremamente tóxicas. Em áreas hidrotermais, onde se quer extrair metais, sabe-se ainda que pode haver muito material radioativo”, conta Sumida, acrescentando que as atividades de mineração certamente causarão a morte de inúmeras espécies.
“O maior problema é que estas espécies possuem ciclos de vida diferentes da maioria das espécies de águas rasas”, diz ele. Isso porque os seres destas regiões vivem muito, se reproduzem tarde e têm poucos filhotes, o que faz com que a recuperação em tais áreas seja extremamente lenta, podendo levar décadas a séculos.
Um exemplo de quão lentos e sensíveis são os processos nessas regiões são cicatrizes deixadas por dragas e outros tipos de maquinário que foram usados em testes nas décadas de 1970 e 1980. Imagens registradas pelo grupo de pesquisa europeu JPI Oceans mostram o rastro dos equipamentos ainda visível no substrato marinho, mesmo 37 anos depois.
Para Julio Nery, diretor de sustentabilidade do Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração), ainda que os riscos tenham de ser considerados, é importante buscar o potencial minerário no fundo do mar.
“Se você vai fazer alguma intervenção na terra, ela pode ser tão danosa quanto no fundo do mar. Não há essa distinção. O que cabe a nós, engenheiros, é fazer isso de uma forma que o impacto seja o mínimo possível e que tenha uma forma de reabilitar a área depois”, opina.
POSSÍVEL IMPACTO NO CLIMA
Além dos riscos para a biodiversidade, há também a preocupação de que a mineração no fundo do mar altere o ciclo do carbono. Os oceanos são a maior reserva de carbono do planeta e esse papel regulador é essencial para a manutenção do clima.
“Uma interferência catastrófica no ecossistema profundo pode afetar a reciclagem e o enterramento do carbono, fazendo com que este possa voltar à atmosfera, resultando em maiores quantidades de gases de efeito estufa e, consequentemente, maior aquecimento global”, explica o diretor do Instituto Oceanográfico da USP.
JÉSSICA MAES / Folhapress