SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que Cristiano Ronaldo e Neymar têm a ver com política? Ambos participam da “lavagem da imagem” da Arábia Saudita, expressão usada pela BBC em um podcast que discorre sobre a instrumentalização do esporte pela monarquia ditatorial da região do Golfo.
A Anistia Internacional coloca os sauditas em sexto lugar entre os países mais problemáticos em direitos humanos, numa lista encabeçada por China e Irã. A reputação dos sauditas foi arrastada na lama em 2018, quando o jornalista e dissidente Jamal Khashoggi, que trabalhava para o Washington Post, misteriosamente desapareceu no interior do consulado de seu país em Istambul, na Turquia.
Soube-se depois que ele foi morto e esquartejado. Uma investigação dos serviços de inteligência dos Estados Unidos designou em 2021 como mandante do crime o príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, que negou qualquer cumplicidade.
De qualquer modo, é MBS (sigla pela qual o príncipe é mais conhecido) o responsável pelo alto investimento saudita em esportes, não apenas quanto ao campeonato local de futebol, disputado pelas 18 equipes da Liga Roshn Saudita -entre elas o Al-Hilal, de Neymar–, mas também ao comprar o time britânico Newcastle United.
Além da aquisição de celebridades futebolísticas como Karim Benzema e N’Golo Kanté, o mecanismo montado pelo príncipe também atraiu para a Arábia Saudita um prêmio de Fórmula 1, disputas de títulos mundiais de boxe e campeões de golfe.
Dina Esfandiary, pesquisadora de Oriente Médio, resume no podcast o papel dos esportes nos planos do príncipe MBS. Em suas muitas modalidades, eles “viraram um instrumento fundamental para os sauditas, que lançam mão desses meios para melhorarem sua reputação e hospedam qualquer evento que traga algum prestígio”. Em tempo, ninguém arrisca quantificar quanto a monarquia saudita gasta em esportes.
Matt Slater, um veterano jornalista esportivo e editor do site The Athletic, relata o esforço saudita em comprar o passe de golfistas de prestígio para que eles disputem seus confrontos em terras do trono local. Em verdade, os sauditas usaram recursos de um fundo público para o desenvolvimento econômico e praticamente encamparam uma associação estrangeira de golfistas.
O país, originariamente um deserto, tem sete complexos de golfe que precisaram ser plantados com terra importada e irrigação caríssima. E isso sem levar em conta o calor local que inviabiliza partidas por volta do meio-dia.
Outro participante do podcast, Dan Roan, editor de esportes da BBC, diz que para os sauditas o esporte se tornou um meio pelo qual a mentalidade metropolitana prepararia a imagem do reino para o período pós-petróleo. Apesar de possuir uma das maiores reservas do combustível, o país raciocina com a hipótese de o petróleo acabar ou se tornar politicamente inviável por questões ambientais. Outras monarquias do golfo, como os Emirados Árabes Unidos, também trabalham em semelhante transição.
O fato é que desde os anos 1970 os sauditas procuram diversificar sua economia, diz Lina al-Hathloul, porta-voz de uma entidade regional de direitos humanos. Mas essa diversificação tem sido mais lenta que o desejado, e os investimentos não petrolíferos paradoxalmente dependem do dinheiro do petróleo.
O lamentável, diz a porta-voz, é que a procura de outros meios de subsistência, como produtos de alta tecnologia, ofusca outras prioridades, como um melhor desempenho nos direitos fundamentais do ser humano. Certas aberrações do passado, como a proibição de as mulheres dirigirem automóveis, já foram abandonadas por MBS, mas há bem mais que isso a ser feito.
Diante desse quadro potencial de insatisfações, o esporte se transforma no ancoradouro em que o regime vem aportar sua reputação. Quem o diz é Aziz Alghashian, especialista em Arábia Saudita na Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
Isso ajuda a explicar o fato de o país ter recentemente pago 47 milhões de libras esterlinas (R$ 298 milhões) por um jovem jogador europeu ainda na faixa dos vinte anos.
O futebol é extremamente popular no reino saudita, e é por isso que o governo dirige os mecanismos de patrocínio dessa atividade que acaba por anestesiar os campos em potencial da reivindicação política. É aquilo que já nos tempos do Império Romano se chamava de “pão e circo”.
O pão vem dos alimentos que não pagam impostos e de um sistema tributário em que a renda dos salários não é submetida a nenhuma alíquota. E o circo é dado pelos esportes, sobretudo pelo futebol.
JOÃO BATISTA NATALI / Folhapress