SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos casos mais emblemáticos de feminicídio do país aconteceu quando esse termo sequer existia. No fim da tarde de 30 de dezembro de 1976, a socialite mineira Ângela Diniz foi morta por seu companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, depois de uma briga na qual ela anunciou o fim do relacionamento.
Doca disparou três tiros no rosto e um na nuca da mulher que dizia amar.
O caso deu início a uma revolução feminista no Brasil. No filme “Ângela”, dirigido por Hugo Prata, a história que chocou o Brasil é retratada de forma a preencher o vácuo deixado por anos quando se pensava na “Pantera de Minas”. Em cenas e diálogos que misturam ficção e realidade, o longa aborda os últimos meses de vida da socialite, interpretada por Isis Valverde, do momento em que conheceu Doca Street (Gabriel Braga Nunes), até os tiros fatais disparados por ele.
O filme, como o nome entrega, é focado nela. Em Ângela. Mulher de espírito livre e aberta a novas experiências, ela teve sua reputação destruída após sua morte. “Quem contou a história majoritariamente foi o advogado do assassino e, depois, ele próprio, com o livro que conta a mesma história, ‘Mea Culpa’. Então faltava essa versão”, diz Prata.
Ele conta que preferiu retratar o “inferno” que se tornou a vida de Ângela após começar a se relacionar com Doca: “Eles se conheceram em agosto, ele a matou em dezembro”, lembra. “Pegamos trechos que mostravam a relação tóxica e tentamos pôr o microfone dentro daquela casa e dar voz a ela”, completou.
Isis diz à reportagem que o filme destaca “o brilho e a força dela” em sua essência, em detrimento das descrições alheias já tão mencionadas pela defesa do assassino no julgamento, em 1979, quando o advogado Evandro Lins e Silva, profissional de renome no meio jurídico, jogou toda a responsabilidade do crime na vítima, descrevendo Ângela como “Vênus lasciva”, “dada a amores anormais”.
Doca teria matado “por amor” e foi absolvido pela tese de legítima defesa da honra (declarada inconstitucional pelo STF só agora, em agosto de 2023) e foi condenado a apenas dois anos de prisão, que nem sequer precisou cumprir. Ele só foi julgado novamente após uma grande movimentação popular do movimento feminista, sob o slogan “Quem ama não mata”.
O filme é o retrato de uma época, e Isis destaca, por exemplo, o ambiente privilegiado e pouco diverso frequentado pela personagem em questão: “Você percebe os lugares brancos que ela frequentava. Não há um preto nas festas”. A roteirista Duda de Almeida garante que “nenhum assunto cabeludo fica de fora”.
A empregada doméstica Lili, com quem Ângela constrói relação próxima ao longo do filme, é responsável por um dos momentos marcantes, em que é “vendida” com a casa comprada pela protagonista. “Tem gente que vai passar batido e falar que é normal, e tem gente que vai ver vai falar caramba, olha que absurdo”, analisa Duda.
Em 2020, o caso também foi recuperado pelo podcast “Praia dos Ossos”, da Rádio Novelo, ganhando grande repercussão e reconhecimento nacional. O viés documental não foi o escolhido pelo diretor, tampouco o formato “true crime” em alta entre espectadores de produções como “A Menina que Matou Os Pais” (caso Suzane von Richthofen).
Responsável também por “Elis”, Prata conta que sentiu “vontade de fazer uma trilogia de mulheres brasileiras”, mas não entrou em detalhes sobre qual seria sua próxima biografada.
“Ângela” também tem Bianca Bin, Emílio Orciollo Netto, Chris Couto, Gustavo Machado, Carolina Manica e Alice Carvalho no elenco. O longa estreia em 31 de agosto nos cinemas e foi um dos finalistas ao prêmio de Melhor Filme no Festival de Gramado.
LUÍSA MONTE / Folhapress