BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Privilégios de poucos, gestão ineficiente e a herança de um sistema de Previdência generoso demais. Esses são três importantes fatores que impactam os gastos com servidores no Brasil, segundo diferentes especialistas ouvidos pela reportagem.
A discussão de como resolver esses problemas está na ordem do dia, mas a busca de soluções trouxe de volta um antigo debate, se o Brasil quer um Estado mínimo ou um Estado de bem-estar social.
“A nossa Constituição definiu que o Brasil teria um Estado de direito pleno, com saúde pública, base escolar ampla, da pré-escola ao nível superior, e uma rede de assistência social, e isso sinalizou que haveria um gasto maior”, diz Felipe Drumond, consultor da República.org, entidade dedicada a incentivar o debate sobre servidores.
“Claro que existem distorções que precisam ser combatidas, pois temos supersalários, carreiras com ganhos muito acima do mercado, e muita gente ainda fazendo atividades manuais que já poderiam ter sido digitalizadas. Mas a gente precisa aprofundar a discussão para saber qual é o melhor caminho.”
O gasto com salário de servidores, considerando União, estados e municípios, por exemplo, está na média global, mostram dados do FMI (Fundo Monetário Nacional).
No Brasil, o salário pago no setor público equivale a 8,9% do PIB (Produto Interno Bruto). É menor que a média na Finlândia (10%) e na China (9,8%), mais que o Peru (6,2%) e o Chile (6,8%), mas praticamente igual a Espanha e Áustria (ambos com 9%).
Os gastos no país estão acima dos de economias que integram o G20 –o bloco dos países mais ricos–, como França (8%), Reino Unido (7,3%) e Alemanha (5,9%). Os custos com a folha, no entanto, vão distanciando o Brasil da média internacional quando se olha as carreiras no detalhe.
A diferença salarial entre público e privado, chamada de prêmio, é um indicador das distorções que oneram o Estado, afirma Samuel Pessôa, pesquisador do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
Ele cita o paralelo feito por um estudo do Banco Mundial, “Um Ajuste Justo”. O documento mostra que os prêmios são muito baixos e praticamente não existem nos municípios onde se concentra a demanda por serviços à população –educação, saúde e assistência social, e chega a faltar gente.
Nos estados, já aparecem prêmios maiores para algumas funções. Na média, se paga 30% mais, diz o estudo. A União, por sua vez, concentra os desequilíbrios.
Profissionais de direito têm prêmio de 80% e especialistas em gestão pública chegam a receber mais de 100%, segundo levantamento que detalha as diferenças por atividades, feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Em 2022, no entanto, olhando a série histórica, o gasto com funcionalismo no governo federal havia alcançado 3,4% do PIB, o menor patamar desde 2008.
“Esse fato, na minha opinião, justifica a política mais dura contra salários feita durante o governo [Jair] Bolsonaro”, diz Pessôa, avisando que considera a sua fala polêmica.
“No final do ano passado, eu escrevi uma coluna dizendo que a herança econômica do Paulo Guedes não era maldita, porque ele entregava as finanças públicas mais arrumadas. Como Bolsonaro é uma figura difícil de adjetivar, o texto irritou muita gente, mas, se olharmos os números com frieza, foi o que ocorreu.”
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discorda. O próprio Guedes conta ter feito uma reforma silenciosa, lembra José Celso Cardoso Jr., secretário de Gestão de Pessoal, do Ministério da Gestão e da Inovação.
“Na verdade, ele [Guedes] promoveu arrocho de salários, paralisou concursos e contratações, deixando que as aposentadorias fossem esvaziando e sucateando inúmeras áreas”, afirma Cardoso.
“É o pior tipo de reforma possível, baseada no envelhecimento, na aposentadoria dos servidores e na corrosão inflacionária de seus salários.”
O governo mudou, mas as discordâncias persistem. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), voltou a falar em tirar da gaveta a reforma administrativa de Guedes, argumentando que é preciso rever privilégios do funcionalismo, conter gastos e melhorar o atendimento à população.
A proposta é colocar em votação a PEC (proposta de emenda à Constituição) 32. O texto flexibiliza contratação e estabilidade, além de remodelar a progressão nas carreiras.
A gestão Lula considera o texto uma punição aos servidores. Defende mudanças gradativas, por meio de portarias, decretos ou projetos de leis, que vão buscar a melhora na seleção de pessoal, via concursos, a realocação dentro da máquina pública e o aprimoramento das carreiras.
Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito SP, que estuda a reforma administrativa, sugere cautela nessa discussão.
Ele lembra que a administração pública não suporta colocar todo mundo no regime efetivo dentro do Orçamento limitado. Os governos, justamente na tentativa de buscar saídas para obter mais eficiência e gastos menores, já tornaram o regime de trabalho muito diversificado –e cita exemplos.
As prefeituras e empresas estatais fazem terceirização de mão de obra para saúde, educação, segurança e assistência social, o que tem custos menores e também reduz o uso da burocracia pública. A OS (organização social) se tornou constante no atendimento à saúde.
Há também presença forte de temporários, que têm um regime mais simples, rápido e barato de admissão e gestão.
A administração pública ainda adotou o residente na área jurídica. É um sistema similar ao usado com médicos. Ele substitui o concurso público para novos advogados, cuja remuneração é mais alta e cresce muito depressa após o ingresso.
Nesse contexto, Sundfeld considera inadequado dizer que o Estado gasta demais.
“Há um teto para gastar com pessoal, o pacto do Brasil nessa área está na Lei de Responsabilidade Fiscal, e eu desconheço algum esforço de cálculo que mostre que o limite é alto e gastamos demais”, afirma ele.
“No entanto, é verdade que precisamos rever certos segmentos, como o jurídico –juiz, promotor, advogado, defensor–, que ganham valores extraordinariamente acima da iniciativa privada por funções equivalentes. Você pode dizer que não existe juiz na iniciativa privada, mas tem profissional jurídico de alto nível, como os juízes, então, podemos comparar. Nesse caso, daria para distribuir melhor os recursos.”
Segundo levantamento da República.org, uma das poucas comparações internacionais sobre essa atividade foi realizada em 2016 pelo FMI. O levantamento mostrou que a distorção local extrapola fronteiras. Comparando as despesas com os judiciários de 42 países, a do Brasil era a maior, com 1,4% do PIB.
Quase 90% do seu orçamento é representado por gastos com salários, vencimentos e subsídios, incluindo benefícios como auxílios-moradia e creche, apesar dos altos salários.
No último ano, segundo a República.org, os magistrados receberam em média R$ 55,6 mil, quando o teto constitucional, estabelecido pelo rendimento máximo de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), era de R$ 39,3 mil. Em abril, o valor subiu R$ R$ 41,6 mil.
Procurada pela reportagem para comentar a questão, a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) não se manifestou até a publicação deste texto.
O auge das distorções, no entanto, ocorre quando se inclui os inativos na conta. O gasto com servidor sobe, então, para 13,5% do PIB.
A demora em fazer as reformas previdenciárias ainda vai pesar por muitos anos. Um passivo enorme está entrando só agora, afirma o economista Paulo Tafner, que atuou para mudar as leis previdenciárias.
O rombo na União com Previdência de civis e militares já está perto de R$ 95 bilhões por ano. Nos estados, passa de R$ 110 bilhões.
“Na prática, o gasto com pessoal é uma combinação de ativos com inativos, e se olhar vai ver que em muitos estados os gastos com inativos já superam os com ativos”, diz Tafner.
“Está acontecendo o que eu falava 20 anos atrás: o peso dos inativos vai bloquear o aumento de salário com ativos, pois ainda tem muita gente trabalhando que vai se aposentar pelas regras antigas, antes da reforma de 1998. Eles têm integralidade de vencimentos. Começo a temer que vamos precisar de uma nova reforma mais cedo do que imaginava.”
ALEXA SALOMÃO / Folhapress