SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Na mitologia iorubá, Orunmilá é a divindade da sabedoria e da adivinhação que tem ligação com o Orum, o mundo espiritual. Foi a este orixá que Wellington Adriel Pacífico, 22, fez seu pedido no altar da Basílica do Senhor do Bonfim, um dos principais templos católicos de Salvador.
“Que Orunmilá ilumine cada autoridade que está envolvida nas investigações. E que tanto a investigação do caso Mãe Bernadete, quando do caso Binho do Quilombo, sejam elucidadas para que a gente possa escrever nossa história e dizer que os assassinos e os mandantes foram presos.”
Neto de Bernadete Pacífico, 72, a Mãe Bernadete, Wellington viu a avó ser assassinada a tiros na última semana no Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA). Na missa de sétimo dia da morte, reiterou seus pedidos por Justiça e proteção do seu povo.
A morte de Bernadete, que ganhou repercussão internacional e desencadeou uma série de protestos liderados por entidades do movimento negro, elevou a pressão por ações do governo federal, dos estados e de órgãos do sistema de Justiça.
Longe de ser um caso isolado, a morte da líder quilombola baiana escancarou um padrão que se repete na luta por regulação fundiária dos territórios, que inclui assassinatos, ameaças e uma vida de restrições aos moradores das comunidades remanescentes de quilombos.
Ao menos 30 líderes quilombolas foram mortos nos últimos dez anos, segundo a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos). Na maioria dos casos, as mortes aconteceram em meio ofensivas de grileiros, madeireiros e empresários sobre as terras das comunidades tradicionais.
Estados do Nordeste como Bahia e Maranhão concentram a maioria das mortes, que estão relacionadas com disputas fundiárias e, em sua maioria, seguem sem elucidação e punição dos culpados.
São casos como o de Edvaldo Pereira Rocha, líder da comunidade quilombola Jacarezinho, em São João do Soter (MA), que foi assassinado a tiros em abril de 2022 no povoado Bom Jardim por homens que chegaram em uma moto.
Na Bahia, seis anos antes da morte de Bernadete, seu filho Flávio Gabriel Pacífico, conhecido como Binho do Quilombo, foi morto a tiros por homens armados também na comunidade Pitanga dos Palmares. O caso segue sem solução após três anos de investigação da Polícia Civil e outros três da Polícia Federal.
A semana após a morte de Bernadete foi marcada por cobranças do STF (Supremo Tribunal Federal), Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União por medidas que deem garantias de proteção às comunidades quilombolas.
Ao mesmo tempo, o Governo da Bahia acena com a reavaliação do programa de proteção, que não conseguiu evitar a morte de Bernadete Pacífico. Ela vivia em uma casa cercadas por câmeras e recebia visitas periódicas da Polícia Militar, mas não havia uma guarda permanente na comunidade.
A Bahia possui 93 pessoas atendidas pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, dentre indígenas, quilombolas e líderes de comunidades de fundo e fecho de pasto. Outras 25 pessoas estão com pedido para inclusão no programa em análise.
O programa é executado pelo governo do estado em parceria com organizações da sociedade civil. Mais do que garantir proteção policial, o foco é trabalhar para resolver as causas das ameaças, o que no caso das comunidades quilombolas passa pela regularização fundiária, que depende do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Do reconhecimento à titulação, contudo, as comunidades enfrentam uma longa jornada que pode demorar até duas décadas. Estudo da entidade Terra de Direitos divulgado em maio revelou que existem 1.802 processos de regularização de territórios quilombolas.
Desde 1988, quando o direito ao território quilombola foi reconhecido pela Constituição, 53 áreas foram tituladas parcial ou totalmente pelo Incra. Se o Brasil mantiver o atual ritmo de regularização, aponta a Terra de Direitos, serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os demais territórios.
Sem a posse da terra, comunidades ficam vulneráveis à ação de invasores. No caso de quilombos que ficam próximo de centros urbanos, ainda há uma pressão da especulação imobiliária.
“Querem ocupar nossos territórios sem consulta e sem dar direitos ao povo que neles vivem. Só vamos garantir a proteção para a população e os líderes quilombolas quando houver a regularização dos territórios”, afirma Sandar Andrade, cordenadora-executiva da Conaq e membro do Conselho Nacional de Direitos Humanos.
Na semana passada, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União cobraram a adoção, em caráter de urgência, de medidas para proteger os territórios quilombolas na Bahia.
Os órgãos sugeriram a criação de uma unidade de investigação especializada em casos relacionados a povos tradicionais e a suspensão de licenças para obras em que não houve consultas prévias às comunidades impactadas.
Secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas afirma que já começou uma discussão interna para reavaliar o modelo do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.
“É óbvio que a morte de dona Bernadete nos desafia a acelerar esse processo de aprimoramento do programa. É preciso salvaguardas para as comunidades, ficar apenas nas medidas policiais não é suficiente”, afirma.
Ele afirma que serão adotadas medidas para aperfeiçoar os canais de diálogo com as comunidades e os mapeamentos de riscos. Também destaca que a prioridade é garantir a identificação, julgamento e punição dos agressores para evitar a impunidade.
Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania disse atuar para combater o racismo religioso com o fomento a ouvidorias externas de polícia e capacitação de agentes de segurança pública para proteção dos grupos vítimas de intolerância.
Em relação à questão fundiária, disse que as estratégias do programa de proteção devem vir combinadas com políticas que viabilizem a titulação dos territórios quilombolas, criando uma solução definitiva para episódios violentos como o que vitimou Bernadete.
Wellington Adriel, neto ela e um de seus sucessores na luta pelo Quilombo Pitanga dos Palmares, cobra empenho das autoridades para que não se repitam os casos de violência contra comunidades tradicionais.
“O Brasil tem 500 anos e ao longo desses séculos muitas injustiças já aconteceram com o povo preto. A gente está cansado, nosso povo foi explorado por muito tempo. A gente precisa fazer parte da mudança e o Estado tem um papel fundamental nisso.”
JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress