Morre Lana Bittencourt, uma das últimas divas da era do rádio, aos 91 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A cantora Lana Bittencourt morreu nesta segunda-feira (28), aos 91 anos, em decorrência de uma parada cardíaca e pulmonar. Ela estava internada desde o fim de julho no Hospital Alcides Carneiro, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

Assistir à Lana Bittencourt, que nos deixou hoje aos 91 anos, era sempre uma experiência arrebatadora. Era comum a plateia aplaudi-la de pé, não ao final, mas ainda no meio de seus shows, por causa de alguma de suas interpretações melodramáticas e apoteóticas.

Ela é da geração de cantoras da era do rádio que se celebrizaram por muita voz e interpretações operísticas, porém, não parou no tempo. Por ser muito musical e antenada às novidades, soube ser boa intérprete da MPB de Ivan Lins e Vitor Martins, como “Bilhete”, e de Gonzaguinha, como “Sangrando” e “É”.

Para ingressar na carreira, teve sorte, pois foi das raras cantoras de seu tempo que não tiveram restrições por parte de sua família para ser artista, à época uma atividade marginalizada. Seu pai, apesar de militar, era poeta e compositor. Sua avó italiana também a incentivou a estudar canto lírico desde cedo. Entrando na idade adulta, matriculou-se na faculdade de Filosofia, transferindo-se depois para Letras, pois seu sonho era trabalhar no Itamaraty no setor de biblioteconomia.

Nesse meio tempo, gravou um jingle de uma firma de caminhões composto por seu pai que tocava nos alto-falantes de várias cidades nordestinas. Sua voz então começou a ser notada, o que a fez ter as primeiras experiências na Rádio Iracema de Fortaleza e na TV Jornal do Comércio, de Recife.

De volta ao Rio, foi crooner da boate Meia-Noite do Copacabana Palace, cantando em vários idiomas, enquanto atuava como freelancer em alguns programas na Rádio Tupi, até conquistar seu primeiro contrato radiofônico na Mayrink Veiga. Dali para o disco foi um pulo.

Estreou em 1954 na Todamérica, passando à multinacional Columbia no ano seguinte, dirigida por Roberto Côrte Real, que precisava de uma intérprete versátil para gravar sucessos também internacionais, ao modo da cantora ítalo-franco-alemã Caterina Valente, de cujo repertório ela pinçou algumas pérolas.

Batizada de “A internacional” pelo apresentador César de Alencar, gravou de tudo um pouco. De versões de clássicos cubanos de Ernesto Lecuona, como “Malagueña” e “Andalucia”, e canções-tema de filmes americanos, como “Johnny Guitar”, a outras no original estrangeiro, como “Hymne à l’amour”, do repertório de Edith Piaf, além de boleros e tangos.

Entre as nacionais, emplacou o samba-canção “Se alguém telefonar” e o baião “Zezé” (com versos em várias línguas), mas foi com a versão do “Little darlin'” que ela se consagrou. Vendeu 700 mil discos de 78 rpm deste calypso-rock em 1957, se beneficiando da demora dos discos estrangeiros chegarem ao país, no caso, os do grupo americano The Diamonds, que lançou a música por lá.

Isto chamou a atenção do diretor internacional da Columbia, Nat Shapiro, que veio ao Brasil lhe dar um troféu pela vendagem histórica, além de convidá-la para ir aos Estados Unidos.

Entre 1958 e 1960, gravou os LPs “Musicalscope” e “Intimamente”, participou de três filmes, sendo dois de Mazzaropi, que era seu fã, cantando, entre outras, o rock “Alone” e a regravação do samba-canção “Ave Maria”, do repertório de sua cantora favorita, Dalva de Oliveira, que também entoou no programa “Noite de Gala”, de Flávio Cavalcanti, na TV

Tupi, num pitoresco evento em prol da Pró-Matre, prestes a dar a luz da primeira filha, com direito a ambulância no palco para levá-la até o hospital para o parto.

Lana teve seu próprio programa de rádio, “Audição de Lana”, nas rádios Mayrink Veiga e Tupi, do Rio, e cantou muito em televisão, no Rio e em São Paulo. Na década de 1960, gravou um tributo a dois compositores que despontavam à época, Luiz Antonio, craque do sambalanço, e Tom Jobim, da bossa nova (o LP “Sambas do Rio”); além de outro só com sambas da Bahia (“Exaltação ao samba”) e o eclético “O Sucesso é Lana Bittencourt”, em que cantava o gospel “I will follow him (Chariot)”, hit de Petula Clark. No final da década, deu uma parada na carreira para cuidar dos filhos adolescentes.

Lana voltou em 1977 e nunca mais parou, sempre renovando o repertório, com canções mais contemporâneas, incluindo “Karma secular”, de Angela Ro Ro, que ela teve a primazia de lançar, batizando um de seus LPs independentes, em 1986.

Embora injustamente distante da grande mídia, suas apresentações sempre causaram comoção, sobretudo do público LGBTI+, que a homenageou em diversas oportunidades e para a qual fazia discursos inflamados no palco, afinal, era um misto de divas como Dalva de Oliveira, Judy Garland e Shirley Bassey, com interpretações deliciosamente “over” e emocionadas.

Às vésperas de completar 80 anos, não me conformava em ver Lana sem gravar há tanto tempo e com a voz ainda perfeita. Foi então que produzi o CD duplo/DVD “A diva passional, ao vivo”, retirado de dois shows no Teatro Rival, no Rio, que traziam 28 faixas e as participações de Alcione, Ney Matogrosso, Rogéria e da neta Mariana Braga, que herdou dela o vozeirão.

O técnico de mixagem me informou que não seria preciso refazer nada nem mexer em sua voz em nenhuma canção, pois ela não havia cometido absolutamente nenhum deslize. Um fenômeno que nunca vi igual. Depois, a convidei para participar do show “Duas noites para Dolores Duran”, outro que virou CD/DVD ao vivo, em que, entre outras, cantou “O que é que eu faço?” em duo com Leny Andrade.

Sua última apresentação ao grande público foi noutro espetáculo que produzi no Imperator, no subúrbio carioca do Méier, interpretando “Over the rainbow”, aos 87, em 2019. Durante a pandemia, em 2020, ainda fez “lives” musicais com seu segundo marido e fiel escudeiro, o guitarrista Mirabeaux.

Lana por vezes criava histórias que gostaria de ter vivido e as contava como verdade. Demorei a entender que isso fazia parte de seu folclore pessoal, mas vi, por fim, que naquele universo teatral de encantamento que ela proporcionava em seus shows, tudo fazia sentido.

Era, no fundo, uma atriz num mundo à parte em que ela também gostava de dizer palavras fortes, nada comuns para uma senhorinha, como que frisando que nunca perdera o tesão pela música, pelo companheiro e pela vida. Lana se foi hoje, mas o Brasil ainda precisa fazer justiça a uma de suas maiores vozes de todos os tempos.

RODRIGO FAOUR / Folhapress

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